Sorrateiramente,
o conceito de Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem sido substituído pelo de
sistema nacional de saúde alteração muito conveniente para o sector privado já que
cria muitas ambiguidades em relação ao sector público e que tem permitido a transferência
de avultadas somas do orçamento do SNS para o negócio da saúde.
Ora,
é contra a degenerescência da matriz inicial do SNS que se tem vindo a acentuar
com políticas de direita, quer levadas a cabo por governos PSD/CDS quer pelo
próprio PS, sempre em favor do sector privado da saúde, que se pretende com a
aprovação de uma nova Lei de Bases da Saúde.
Numa
altura em que existe na AR um conjunto de forças favoráveis à defesa do sector
público da saúde, é bom que seja aproveitada esta circunstância para que se
crie “um instrumento jurídico que contribua para que a política de saúde e a organização
do Serviço Nacional de Saúde estejam alinhados” no sentido de todos os
portugueses serem beneficiados de igual modo no seu bem-estar independentemente
da sua condição social. É esta chamada de atenção que se sente implícita no
artigo de opinião do médico Cipriano Justo que transcrevemos do “Público” de
ontem.
Quando os deputados votarem a lei que vier substituir a actual
Lei de Bases da Saúde, a expectativa é de que venha a representar um
instrumento jurídico que contribua para que a política de saúde e a organização
do Serviço Nacional de Saúde estejam alinhados, sejam o contrato social que no
sector responda aos défices que se foram acumulando e clarifique o papel dos vários
actores com interesses nos cuidados de saúde. E de uma vez por todas
considerar-se que cabe à organização, financiamento e gestão serem
instrumentais relativamente à saúde, e não o contrário, como tem vindo a
acontecer.
São várias as disposições que contribuíram para a criação do
conceito de sistema de saúde, aquelas que formalmente têm respaldado o
desenvolvimento de ambiguidades e cavalgamentos nas relações entre o sector
público e o sector privado, e que foram responsáveis pela transferência, em 2015
(Conta Satélite da Saúde), de 38% do orçamento do SNS, à volta de quatro mil
milhões de euros, para as empresas produtoras de cuidados de saúde. O teste à
aprovação de uma lei que vinque as fronteiras entre os vários interesses estará
na eliminação de formulações como “O Estado apoia o desenvolvimento do sector
privado (...) em concorrência com o sector público”, “Facilitação da mobilidade
do pessoal do Serviço Nacional de Saúde que deseje trabalhar no sector
privado”, “A hospitalização privada, em especial, actua em articulação com o
Serviço Nacional de Saúde”, “A gestão das unidades de saúde deve obedecer, na
medida do possível, a regras de gestão empresarial”, “Pode ser autorizada a
entrega, através de contratos de gestão, de hospitais ou centros de saúde do
Serviço Nacional de Saúde a outras entidades ou, em regime de convenção, a
grupos de médicos”, “A lei pode prever a criação de unidades de saúde com a
natureza de sociedades anónimas de capitais públicos”.
Embora nove das dez disposições da Base II da lei de 1990, sobre
a política de saúde, se mantenham actuais, desde logo a que se refere à
promoção da saúde e à prevenção da doença como fazendo “parte das prioridades
no planeamento das actividades do Estado”, acabaram, nos 28 anos que leva da
sua existência, por não terem passado de boas intenções que nunca encontraram
suportes institucionais, comunitários e as parcerias indispensáveis que as
concretizassem. É por isso que, estando na ordem do dia o dossier
da descentralização, ela deve ser aproveitada para promover a reunião, a
organização e a convergência dos actores públicos que localmente estejam em
melhores condições para as concretizar.
É verdade que uma boa
Lei de Bases da Saúde não faz a Primavera da política de saúde do país, mas
passa a representar um quadro de referência a partir do qual se podem construir
boas soluções. Tudo para contrariar o pessimismo justificado de Slavoj Zizek (A
coragem do desespero): “A esquerda existente é bem conhecida pela sua
assombrosa habilidade de nunca perder uma oportunidade de perder uma
oportunidade.” Os deputados do PS, BE, PCP e PEV, os mesmos que no Parlamento
têm conduzido e cumprido exemplarmente a letra dos acordos de 10 de Novembro de
2015, têm, neste caso, uma oportunidade única para cumprirem também o seu
espírito. Porque a política, como a natureza, tem horror ao vazio.