(…)
Deve estar enganado quem, nos EUA, na Europa ou
noutras latitudes, se refugia na ideia de que basta fazer de morto e esperar
que a tempestade passe. O baralho está a ser manipulado.
(…)
O “livre comércio” sempre funcionou bem a favor
dos poderosos, nem sempre a favor dos outros. Sustentou uma certa “ordem” num
longo espaço temporal.
(…)
Em regra, favoreceu a imposição do abaixamento
dos custos do trabalho, dos salários e da proteção social, mas foi apresentado
sempre como determinante para o desenvolvimento e a democracia.
(…)
Esquecemo-nos de que nem poderes divinos
garantem aos seres humanos alianças eternas.
(…)
Habituamo-nos a ver os países ricos numa defesa
acérrima do “livre comércio” e os pobres a tentarem condições pontuais de
“protecionismo” para minorar os sacrifícios dos seus cidadãos. Agora, este
filme surge de pernas para o ar.
(…)
A mensagem de Trump identifica-se com o que ele
sente: falta de emprego digno e baixo nível de vida.
[Robert F. Kennedy Jr.] foi
empossado como secretário da Saúde dos EUA, uma ideia tão absurda como pôr um
terraplanista aos comandos da NASA (com, claro está, intensidade apaixonada)
(…)
Neste
recém-instalado reinado anticiência já despontam os primeiros sinais de alerta.
Há um surto de sarampo no Texas, cujo foco inicial foi um grupo de cristãos
evangélicos, com escolas próprias, nas quais a maior parte das crianças não
está vacinada.
(…)
RFK
Jr. não é apenas um inócuo antivacinas na intimidade, antes externaliza e
inocula a estupidez. Causa mossa, tem inclusivamente um passado ativista
anti-vacinação.
(…)
Mas
nada será como dantes, com todo o poder da saúde americana agora nas suas mãos,
sob o desígnio Make America
Healthy Again.
(…)
Entretanto,
este surto de sarampo continua a somar casos, RFK Jr. faz recomendações
tresloucadas sobre como (não) conter a gripe das aves e os EUA saem da Organização
Mundial da Saúde (OMS).
(…)
É, sem meias palavras, um imenso retrocesso
civilizacional. Os negacionistas tomaram as rédeas do poder.
(…)
O passo seguinte neste reinado é cercar aqueles
que combatem o obscurantismo – os cientistas.
(…)
Já está a acontecer, sob a forma de
despedimentos e redução de financiamento científico
(…)
A ex-maior comunidade científica do mundo (na
verdade, foi recentemente ultrapassada
pela da China) está em risco de colapso.
(…)
Eis um governo visceralmente anti-intelectual,
a obstaculizar o avanço científico a um nível nunca visto.
(…)
[Esta
cruzada anti intelectual] está a perseguir estudantes universitários que se
manifestaram pelos direitos humanos na Palestina e corta ou planeia cortar
fundos a diversas universidades que se recusaram a
reprimir as manifestações dos seus estudantes.
(…)
Julgo
não haver exemplos deste tipo de ataque frontal à liberdade académica noutros
países cujo regime seja outro que não o totalitarismo.
(…)
Ao que tudo indica Trump não será um querido
líder entre os cientistas.
(…)
Este é
o atual cenário americano, onde o absurdo
permeia a realidade. Nem todos quererão viver nesta segunda vinda do
obscurantismo.
Pedro Laires, “Público”
(sem link)
A fuga
de cérebros é um fenómeno histórico com diversos exemplos. Nós próprios temos
vários, que infelizmente vão no sentido que nos prejudica.
(…)
Na
última década, Portugal foi dos países europeus onde a fuga de cérebros mais se
acentuou, com um significativo impacto
económico que foi até recentemente estimado.
(…)
No extremo oposto, talvez nenhum outro país
tenha beneficiado tanto da fuga de cérebros como os EUA.
(…)
Isto
aconteceu quando o contexto político e social era desfavorável no nosso lado e
próspero no outro lado do Atlântico.
(…)
A tendência inverte-se e surgem sinais de marcha-atrás no
êxodo de talentos.
(…)
[Foi
da Alemanha, no contexto da ascensão do nazismo que muitos] cientistas
emigraram – o que contribuiu para que os EUA se firmassem como a maior potência
científica e tecnológica (e, já agora, militar) do mundo no pós-guerra.
(…)
Hoje, o obscurantismo americano repele cérebros
e a Europa deverá estar pronta para os acolher.
(…)
A
reversão deste fenómeno é, portanto, uma inequívoca oportunidade para a Europa,
que deverá saber atrair os melhores talentos nas áreas técnico-científicas em que está mais atrasada.
(…)
Nós, por cá, deveríamos saber acompanhar esta
“corrida aos cérebros”.
(…)
Relembrar
que não é só a ciência que está a ser atacada, mas que esta é uma investida da
indecência e do absurdo em toda a linha, ataca também a educação, a cultura
e os direitos fundamentais.
(…)
Que
toda esta tragédia americana, que se abate sobre o mundo, nos sirva pelo menos
de ferramenta e seja uma oportunidade para ganharmos alguma sabedoria.
Pedro Laires, “Público”
(sem link)
Vivemos tempos estranhos. Não apenas difíceis.
Mas estranhos, porque o que antes nos causava indignação agora muitas vezes nos
deixa apenas em silêncio.
(…)
O medo voltou, mas com novas máscaras. E com
ele, a coragem. Parece contraditório, mas não é. Há um medo que paralisa, sim.
(…)
Mas há também a ausência do medo que se
transforma em arrogância e abuso.
(…)
[Há políticos] a violar direitos humanos com a
maior das naturalidades. E nada acontece.
(…)
Não há sanções, nem sociais, nem legais, nem
morais.
(…)
Assistimos a uma espécie de flexibilização da
ética e da legalidade.
(…)
O medo deixa de ser reação e passa a ser
condição e é aí que a liberdade se desfaz.
(…)
Vamos aprendendo, quase sem notar, a aceitar
certos abusos como parte do funcionamento normal das coisas.
(…)
Porque quando deixamos de acreditar que vale a
pena lutar, abrimos caminho para que tudo continue como está, e pior, como se
fosse natural!!!!
(..)
É preciso dar maior visibilidade ao que temos
vindo a assistir em vários cantos, grupos, comunidades, onde as pessoas se
juntam e dizem basta.
(…)
A coletivização da coragem talvez seja a única
saída real que temos.
Fátima Alves, “diário as beiras”
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