sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A CALAMIDADE DAS DESIGUALDADES


O estudo promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) sobre as desigualdades em Portugal teve o condão de chamar a atenção para esta calamidade que afecta o nosso país. Infelizmente o debate não tem atingido o patamar que a situação requer mas vamos assistindo a algumas tomadas de posição, em especial, na opinião publicada.
As conclusões do estudo em consideração, não trazem novidade nenhuma relativamente a outros já trazidos à praça pública como por exemplo através da Intersindical, apenas confirmando muito do que já se sabia. Com a vantagem de a FFMS não ter qualquer ligação à “esquerda radical”.
No texto seguinte, que transcrevemos do Público da última terça-feira, o autor (*) faz uma abordagem muito interessante sobre o tema das desigualdades em Portugal pelo que se recomenda vivamente a sua leitura e uma profunda reflexão.
1. Portugal continua a ser um dos países mais desiguais da Europa. E essa desigualdade, quando medida antes das transferências sociais, subiu nas últimas décadas. Subiu, mesmo nos tempos recentes de crescimento económico reduzido, negativo ou de estagnação. Pergunta simples: se o aumento das desigualdades não resultou da apropriação dos ganhos do crescimento (fracos ou nulos) no topo da escala de rendimentos, qual foi a sua origem? Resposta também simples: resultou do esmagamento dos rendimentos no meio e na base da escala dos rendimentos. Por outras palavras, resultou de uma redistribuição, só que a favor de quem já tinha mais. Nova pergunta: por que razão sem crescimento faz sentido uma redistribuição a favor dos mais ricos mas, segundo se lê por aí, já não faz sentido o contrário, ou seja, uma redistribuição em favor dos menos ricos?
2. A tese de que precisamos de crescer antes de redistribuir, essa sim, não faz qualquer sentido. Primeiro, porque, como vimos, as variações na desigualdade dependem muito mais de variações na distribuição dos rendimentos, as quais, por sua vez, dependem sobretudo de escolhas políticas, do que de variações no crescimento. Por isso, nada nos garante que com mais crescimento haverá mais redistribuição: veja-se o que tem acontecido nos EUA. E, segundo, porque a redução da desigualdade é ela própria um mecanismo potenciador do crescimento. Ao contrário da austeridade, que não promove o crescimento económico mas garante o aumento das desigualdades sociais, políticas de igualdade poderiam ser não só mais justas mas também mais eficazes na promoção daquele crescimento.
3. Analisando a evolução da desigualdade em Portugal, verifica-se que esta tem sempre crescido quando medida antes dos efeitos redistributivos das políticas. Porém, se considerarmos aqueles efeitos, a desigualdade tem variado: em regra, diminui quando a esquerda está no poder, aumenta quando a direita governa. As políticas contam, fazem a diferença. Há, no entanto, limites às políticas públicas de redistribuição, sobretudo porque, quando a desigualdade é maior, e portanto maiores são as pressões para o aumento da despesa pública, mais difícil é também o aumento da receita. O problema deve pois ser enfrentado antes, no plano das regras económicas da distribuição, evitando o crescimento primário das desigualdades e a maior necessidade de redistribuição através do sistema fiscal. Por exemplo, reforçando o papel da negociação coletiva ou eliminando as formas mais abusivas e generalizadas de precarização do emprego.
4. A redução das desigualdades não deve ser confundida com a redução da pobreza. Sendo esta uma prioridade, convém não esquecer que a desigualdade, por si só, quando excessiva, mina gravemente a coesão social. Por isso é legítimo e desejável desincentivar o enriquecimento sem limites. Não há razões sociais, económicas ou morais que justifiquem o crescimento exponencial dos rendimentos individuais sem um correspondente aumento da progressividade dos impostos sobre esses rendimentos, ou de outras medidas que desincentivem tal crescimento para além de limites aceitáveis. Em primeiro lugar, porque não há sucesso individual que não beneficie dos recursos sociais que ampliam os efeitos do mérito individual. Depois, porque o incentivo economicamente desejável ao investimento é contrariado quando não há limites à maximização do rendimento no curto prazo. E não se diga que assim se compromete, necessariamente, o investimento e o crescimento: os períodos recentes de maior crescimento, nos EUA como na Europa, foram também os anos de maior progressividade dos impostos.
5. A esquerda só é esquerda quando tem propostas para combater a desigualdade. E, numa perspetiva social-democrata, estas podem ser reduzidas com eficácia no âmbito de uma economia de mercado dinâmica, como nos mostra a história recente, embora hoje as dificuldades sejam maiores em consequência de um quadro europeu muito adverso. Para isso, é indispensável alinhar em permanência a ação política com o objetivo de reduzir as desigualdades. A este propósito, recordo a proposta, mil vezes repetida, de Robert Reich, nos tempos em que integrava o primeiro Governo de Bill Clinton: avaliar, sempre, o impacto das políticas na desigualdade. Ora aí está uma boa sugestão para uma boa governação, em particular para uma boa governação socialista.
6. Num país tão desigual como Portugal faltam debates sobre estes problemas. Contrariando esta lacuna, a primeira Conferência Socialista, realizada em Coimbra no passado fim de semana pelo PS, elegeu a desigualdade como tema central, abrindo uma discussão em que participaram académicos, governantes e militantes dos diferentes partidos da esquerda. Faz falta alargar estes debates nos partidos mas também entre parceiros e movimentos sociais, em geral. E faz falta consensualizar a ideia de que, tal como hoje não se dispensa a avaliação do impacto orçamental das políticas, seja igualmente imperativa, para todos os governos, a regra de ouro que atrás se sugeriu: avaliar, sempre, o impacto das políticas na desigualdade. Conhecêssemos nós esses impactos quando foram definidas as políticas de austeridade do Governo de Passos Coelho e, provavelmente, outra teria sido a oposição à sua concretização.
(*) Rui Pena Pires, sociólogo, professor no ISCTE-IUL

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