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“O que sucedeu era inevitável. Apesar de um certo desenvolvimento entre 1950 e 1970, no "25 de Abril" Portugal era ainda um país muito pobre. Não falo de uma certa classe média urbana, que já ia comprando carro e fazendo, de quando em quando, uma ou outra viagem barata e curta. Falo da população rural e da gente que se começava a acumular à volta de Lisboa e do Porto ou emigrava ilegalmente para a Europa. Não tenho boas memórias desse tempo. A Universidade excedia com certeza em incompetência e servilismo o pior que havia no mundo. Na Faculdade de Direito, que não dispensava a gravata e uma cerimónia inútil e arcaica com os srs. professores, persistia o uso da sebenta (que se devia decorar). Na Faculdade de Letras (onde, por fim, me formei em Filosofia), quase não existiam professores no sentido substantivo da palavra e os que existiam vinham de Espanha ou da Igreja. Não se aprendia nada. O dinheiro não sobrava. Desde a escola que usei fatos virados do meu pai (que ficavam com as "casas", cerzidas, do lado errado). Os sapatos só se mudavam depois de muitas meias solas. Como, antes do nylon, as camisas, depois de muitos colarinhos de substituição e de uma dezena de punhos novos. Não se jantava fora e a disciplina doméstica impunha que se ficasse sob vigilância durante a tarde para, pelo menos, simular uma razoável "aplicação ao estudo" (a expressão é da época). Claro que nem toda a gente cumpria estes deveres. Mas quem os cumpria, ou arranjava maneira de fingir que os cumpria, estava reduzido a ler e, bastante mais tarde, a ver a horripilante televisão de Salazar e de Caetano. A sufocação da Ditadura explica em grande parte a prodigalidade e o desleixo da democracia. Portugal andava desesperado e faminto. Pior ainda, esse Portugal da guerra de África e da hipocrisia oficiosa deixara de ser compatível com a Europa - mesmo com a Espanha de Franco. Aqui não se vivia, só se vivia para lá de Badajoz ou, preferivelmente, dos Pirenéus. Não admira que no "25 de Abril" os portugueses pedissem tudo: a revolução e, passada a fantasia da revolução, um país moderno, com uns tostões no bolso, um Estado-providência (hoje "social") e uma economia em crescimento. Na imaginação comum, a "Europa" com certeza que pagaria. Alguma coisa pagou e, quando o que ela pagava não chegou para acalmar a nossa geral desconfiança e a nossa fome atávica, os governos entraram tranquilamente pelo caminho histórico do défice e da dívida, sem perceber que nos levavam à miséria do costume. Se calhar, o peso do voto não lhes permitia fazer mais nada."
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