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Uma questão de marca
O presidente da Câmara de Santa Comba Dão anunciou recentemente a criação da marca Salazar. Para promoção de produtos regionais, a autarquia lança a marca de vinhos “Memória de Salazar”, a que se seguirão outros produtos. Entre os “produtos” a criar, estará, sempre também, o já há muito anunciado Museu do Estado Novo.
João Lourenço, tal é a graça do edil, insulta a memória dos portugueses e torna-se indigno dos seus próprios conterrâneos, vítimas de Salazar, como muitos outros portugueses.
A memória de Salazar, servida em vinho ou noutro bem é uma memória horrorosa. A ditadura fascista de Salazar representou e representa na memória do povo português a miséria, o subdesenvolvimento como opção deliberada de quem defendia um país do género “alegre casinha”, pobrezinho, mas temente a Deus e à Autoridade.
A marca Salazar é uma marca suja de pobreza que atravessou gerações, de gente analfabeta, esfomeada, descalça, a trabalhar de sol a sol, vendendo, a baixo preço, os seus braços em praças de jorna.
A marca Salazar é a de um país campeão da mortalidade infantil, sem cuidados de saúde para além de algum assistencialismo das irmãzinhas caridosas e de uma muito baixa esperança de vida. A marca Salazar é a marca do obscurantismo cultural, onde ler e contar era saber já demasiado. A marca de Salazar foi a marca dos prisioneiros políticos, de exílios, expulsões da função pública e do ensino, de torturas e assassinatos. Por detrás da marca há rios e rios de sangue. Chamassem-se Catarina, Dias Coelho, Humberto Delgado ou Tarrafal, Caxias, Peniche. A marca de Salazar encerra em si as sub-marcas PIDE e censura.
A marca Salazar é a marca da delação, do bufo, do informador oportunista. Salazar é a marca de um patronato esclavagista. É a marca de uma moral falsa, de um controlo social que não dormia, a não ser dormindo às escondidas, de escândalo em escândalo ocultado, de Ballet Rose e outros. Salazar foi uma marca e até teve “slogans”: “beber é dar de comer a um milhão de portugueses” – a promoção de um povo subjugado e silencioso, se necessário pelo alcoolismo e por demências.
A marca Salazar foi a marca de uma guerra de 14 anos, onde morreram milhares de jovens, regressados em caixotes de pinho ou espalhados pelas matas africanas e que condenou muitos à cegueira ou à amputação de membros. Homens que ainda hoje não dormem. É a marca de viúvas e órfãos, de mães a despedirem-se no cais de um filho que voltaria ou não.
A marca Salazar é a marca dos que atravessaram montes e rios para a salto, às escondidas, chegarem a terras de França, de Alemanhas e outras partes e que vivendo em bairros de lata construíram as casas dos outros. A marca Salazar era a marca do medo, medo de falar, de escrever, de pensar até.
Salazar é dono desta marca. Desta sim, a da miséria, da exploração, do medo! No momento em que Portugal atravessa uma enorme agressão externa imposta pela troika não é inocente a ressurreição da marca. Há quem esteja de atalaia para substituir a detestável marca da troika pela marca Salazar de más memórias.
A alternativa é a marca de um povo com dignidade e direitos. A marca de um povo que hoje não trabalha pelo direito ao trabalho de cabeça erguida todos os outros restantes dias.
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