A
causa palestiniana é pouco tida em conta pela chamada comunidade internacional
como se pode concluir pela divulgação que a comunicação social faz das
actividades terroristas perpetradas pelo exercito de ocupação israelita contra
as populações palestinianas ainda que em situações de manifestações pacíficas
ou ainda que a agressividade não passe de meros gritos de slogans ou arremesso de
pedras. O recente massacre levado a cabo pelos israelitas rapidamente desapareceu
dos telejornais e da imprensa escrita de maior circulação.
Como
nada acontece por acaso, e sabendo-se das influências que move a comunidade
judaica em todo o mundo, somos levados a desconfiar que as notícias das atrocidades
cometidas pelas forças armadas e/ou polícia israelitas, rapidamente são
abafadas, por obra e graça, sabe-se lá de quem… Por isso mesmo, as organizações
solidárias com a causa palestiniana e contra a acção levada a cabo pelo estado
terrorista de Israel, devem aproveitar todas as oportunidades para divulgarem a
realidade actual ou a história de como se chegou à situação que agora se vive
no Médio Oriente, desconhecida de muita gente.
Nesse
sentido, aqui fica um oportuno artigo de opinião assinado por João Arriscado
Nunes, professor universitário e investigador do CES, no “Público” de hoje.
A recente celebração da transferência da embaixada
norte-americana para Jerusalém – considerada pelo governo israelita como o
reconhecimento de facto e de direito de Jerusalém como capital de Israel – e a
repressão sangrenta das manifestações de palestinianas e palestinianos
ocorridas na Faixa de Gaza aparecem como uma reafirmação, 70 anos depois, da
dupla face do processo que, em 1948, levou à criação do Estado de Israel e à
expulsão de 800 mil palestinianos do território onde viviam, e a que estes se
referem como Nakba ou “catástrofe”.
Alguns historiadores israelitas, através de minuciosa
investigação realizada a partir dos próprios arquivos do Estado, documentaram
em detalhe o processo de expulsão e despossessão da população palestiniana,
mesmo quando diferem em aspetos da sua interpretação e na sua posição em
relação às políticas do Estado de Israel. Não será de espantar, por isso, que
quando Israel celebra o seu momento fundador os palestinianos se mobilizem para
lembrar o lado sombrio desse processo e o esquecimento ou marginalização a que
ele tem sido votado por boa parte da comunidade internacional.
A supressão desta outra história resultou na recusa de
reconhecer a existência dos palestinianos e palestinianas, tanto enquanto
comunidade política com direito à autodeterminação e a um governo próprio, como
enquanto pessoas com um nome e uma experiência de vida, que trabalham, sofrem e
têm aspirações a um futuro livre e digno. Remetidos para uma zona de não-ser,
como lhe chamou Frantz Fanon referindo-se às populações colonizadas e
racializadas, os palestinianos são tratados hoje pelas forças no poder no
Estado de Israel como um Outro irredutível a qualquer forma de existência que
não implique a sua segregação, espacial ou legal, as limitações à sua
mobilidade, a privação regular de acesso a água e eletricidade, as incursões ou
ações militares de punição coletiva, ou o tratamento diferenciado ou de exceção
pelo sistema judicial, com detenções longas sem julgamento, ou julgamentos em
tribunais militares. A condição de exclusão abissal, para usar o termo de
Boaventura de Sousa Santos, encontra aqui uma manifestação exemplar,
transformando a existência das palestinianas e palestinianos num estado de
exceção permanente, sempre justificado pela ameaça presente ou futura, atual ou
potencial, que faz de cada uma e de cada um agente voluntário, involuntário ou
manipulado por forças hostis de um terrorismo que aparece de toda a parte,
manifesto nos atos de resistência, violentos ou não, e latente nos interstícios
da aparente resignação a uma vida dependente da vontade e do arbítrio de um poder
ocupante.
Mas a história desse duplo processo tem sido feita
também a partir da experiência dos palestinianos e palestinianas de várias
gerações, marcadas pela experiência da Nakba e das suas consequências, e
do seu trabalho com intelectuais, historiadores, cientistas sociais, poetas,
escritores, artistas, músicos e cineastas. Um livro originalmente publicado nos
Estados Unidos, organizado por Ahmad Saadi e Lila Abu-Lughod, um sociólogo e
uma antropóloga, filhos de um grande intelectual palestiniano, Ibrahim
Abu-Lughod, dá conta das diferentes práticas de memória que colocam a Nakba
no centro da constituição de uma memória coletiva e histórica do povo
palestiniano. A obra foi recentemente traduzida para língua espanhola, com o
título Nakba: Palestina, 1948, y los reclamos de la memória, numa
coleção pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e dirigida
por Karina Bidaseca, investigadora da Universidade de Buenos Aires. Esta edição
permite ampliar o acesso a uma contribuição incontornável para a construção da
memória histórica e coletiva do povo palestiniano. A partir dos trabalhos de
historiadores, de estudos antropológicos e sociológicos, dos testemunhos de
mulheres e homens de várias gerações, de memórias resgatadas através de histórias
de vida e outras formas de expressão popular, das reconstituições dos espaços
das aldeias desocupadas e destruídas, da poesia oral, da música e da
literatura, mobilizando recursos expressivos e narrativos diversos, têm vindo a
ser elaboradas outras histórias que resgatam o que foi o acontecimento do lado
dos que o sofreram e o viveram como a “catástrofe” que os separou violentamente
do lugar onde viviam e que reconheciam como aquele a que pertenciam. Nos
diferentes momentos dessa história, foi-se forjando uma memória coletiva desse
outro lado que não pode ser ignorada.
O esforço em
curso de reconstrução de uma história da Palestina pelos palestinianos – os que
vivem em Israel, nos territórios ocupados, nos campos de refugiados espalhados
por vários países ou no exílio –, uma história que estabeleça definitivamente a
inseparabilidade da criação do Estado de Israel e da Nakba e da
inevitabilidade do reconhecimento da dupla face de uma história comum, será
seguramente uma contribuição importante para desfazer os estereótipos que
continuam a desumanizar as várias gerações de mulheres e homens da Palestina, e
uma importante frente pelo reconhecimento da sua identidade, da sua existência
como comunidade política, pela afirmação do direito à vida, da dignidade, da justiça
e de uma paz duradoura.
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