terça-feira, 3 de maio de 2016

CUIDADO COM OS CANTOS DE SEREIA DOS AFECTOS!


Antes de mais chamamos a atenção dos visitantes deste blog para o excelente artigo que Alfredo Barroso assina no Público de hoje (transcrito a seguir), onde o actual apoiante do Bloco de Esquerda coloca o dedo na ferida relativamente ao futuro papel do Presidente Marcelo.
É bom não esquecemos que o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) é filho de um homem do regime salazarista, Baltazar Rebelo de Sousa, que chegou a ser governador-geral de Moçambique no tempo da ditadura. Antes do 25 de Abril é conhecida a proximidade do jovem Marcelo ao ditador Marcelo Caetano, de quem se diz que é afilhado. Com a Revolução dor Cravos, MRS apanhou o comboio da democracia mas suspeita-se que se não tivesse chegado a madrugada libertadora, ele talvez se tivesse convertido num dos notáveis do regime criado por Salazar.
Apesar das suas “falinhas mansas”, MRS continua a ser um homem de direita e, portanto, “intérprete” do projecto da direita, em que um dos seus principais objectivos é expurgar a Constituição da República os direitos económicos e sociais nela inscritos. Ninguém tenha dúvidas de que o actual Presidente da República (PR) vai concorrer a um segundo mandato e já está a trabalhar afincadamente nesse sentido. Então ou logo que a situação política o permita ele irá preparar uma aproximação do PS ao PSD e concretizar o seu projecto. Os portugueses terão de estar muito atentos para não se deixarem embalar nos cantos de sereia dos afectos, permitindo que o céu lhes caia em cima quando menos esperarem.
Como dizia o Eça, sob o manto diáfano da fantasia a nudez forte da verdade. Na sua crónica no PÚBLICO de 25 de Abril, e nos comentários que fez na RTP nesse mesmo dia, Rui Tavares veio chamar a atenção para uma muito preocupante afirmação feita pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a propósito do 40.º aniversário da Constituição, poucos dias antes do discurso feérico que proferiu perante a Assembleia da República na sessão comemorativa do 42.º aniversário do 25 de Abril. 
Disse Marcelo – “a partir de um texto escrito, pensado e deliberado”, como sublinha Rui Tavares – que um dia se irá discutir a inserção na Constituição de “um estado de excepção económico-financeiro” que permita guiar a jurisprudência sem recurso aos princípios gerais que, basicamente, permitiram ao Tribunal Constitucional fazer frente ao pior da austeridade. Para Rui Tavares – e para mim também – a conclusão é clara: “o projecto de eviscerar os direitos económicos e sociais da Constituição, ao mesmo tempo que se lhes presta umas falinhas mansas continua bem presente no espírito da direita portuguesa”. E o seu principal intérprete é, agora, Marcelo Rebelo de Sousa, eleito PR, se não com a conivência, pelo menos com a total displicência do PS.
Convirá lembrar que o país viveu, durante os quatro anos do governo de direita PSD-CDS subjugado pela “troika”, sob uma ditadura financeira de fachada democrática, num estado de excepção económica permanente (que justificou várias arbitrariedades), sujeito a uma usurpação tecnocrática e inebriado por uma espécie de neoliberalismo de Estado – em que a mão bastante visível do Governo, “guiada” pela “troika”, criou condições para a privatização de empresas públicas estratégicas, para o desmantelamento progressivo do Estado social, para a desregulamentação dos mercados, para a flexibilização cada vez maior das leis laborais, para o aumento brutal da precariedade e do desemprego, em suma: para a aplicação do modelo neoliberal almejado pela direita.
A ideia de um “estado de excepção económico-financeiro” inscrito na Constituição, com o objectivo paradoxal de suspender a sua aplicação, remete-nos inevitavelmente para Carl Schmitt – “jurista maldito”, “coveiro do liberalismo” e “Cassandra do Direito Público”, como alguns colegas o classificaram – que fundamentou juridicamente a suspensão sucessiva, por parte de Adolf Hitler, da ordem constitucional legal (a Constituição de Weimar) durante a vigência do Terceiro Reich. Carl Schmitt, em coerência com o seu antiparlamentarismo e o seu desprezo pela democracia, definiu a soberania como o poder de decidir a instauração do “estado de excepção” (“Ausnahmezustand”) – como salientou em 2003 o filósofo italiano Giorgio Agamben no seu incontornável ensaio sobre o “Stato di Eccezione”, publicado em Portugal pelas Edições 70, em 2010.
Para Carl Schmitt, adepto da inclusão de um “elemento ditatorial” nas Constituições, o “estado de excepção” destina-se a libertar o Executivo de qualquer restrição legal ao seu poder normalmente exercido, incluindo o recurso a todos os tipos de violência à margem do Direito (mas sob a sua alçada), inclusive a transformação do sistema judicial numa “máquina de matar”. Como denuncia Giorgio Agamben, o “estado de exepção”, isto é, a suspensão do ordenamento jurídico que estamos habituados a considerar como uma medida provisória e extraordinária, começou a tornar-se – sobretudo desde o “triunfo” da ideologia neoliberal – o paradigma normal da governação, que determina cada vez mais a política dos Estados democráticos, tanto no plano interno como externo.
Numa célebre polémica jurídico-político com Hans Kelsen, um dos seus principais rivais, Carl Schmitt – apoiado por figuras proeminentes do nazismo, como Hermann Göering, Hans Frank e Wilhelm Frick – sustentou que a função de “Guardião da Constituição” era de natureza política, e não jurídica, em consequência do que só o Presidente do Reich poderia desempenhar essa função. Com a ascenção ao poder do Partido Nazi, em 1933, essa função passou a caber ao “Führer” Adolf Hitler. Quanto a Hans Kelsen, refutou a argumentação de Carl Schmitt, defendendo que era essencial que a função de “Guardião da Constituição” fosse desempenhada, numa democracia moderna, por um Tribunal Constitucional, integrado por magistrados e outros juristas competentes, o que garantiria maior imparcialidade nas decisões, especialmente quando se tratasse da protecção das minorias ou de questões relacionadas com as oposições aos governos. A teoria de Carl Scmitt triunfou, na década de 1930, graças à implantação do III Reich alemão concebido pelos nazis. Já a teoria de Hans Kelsen, jurista e judeu, só conseguiu triunfar a seguir à II Guerra Mundial, com o restabelecimento da democracia na Alemanha.
Em suma, e para terminar: preocupa-me seriamente que o professor de Direito Marcelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República, que jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição, esteja mais próximo da teoria sustentada por Carl Schmitt do que da teoria defendida por Hans Kelsen. Sob o manto diáfano do discurso proferido na AR, no dia 25 de Abril, a nudez forte da verdade que é a sugestão do “estado de excepção”.

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