quinta-feira, 2 de julho de 2015

O FANATISMO ANTI-IVG VOLTA A ATACAR


A Iniciativa Legislativa de Cidadãos que amanhã vai ser discutida na Assembleia da República e que tem por finalidade alterar a Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) aprovada em referendo em 2007 é, não tenhamos dúvidas, um primeiro passo para o esvaziamento ou mesmo a revogação daquela Lei, a longo prazo, caso a correlação de forças na Assembleia da República lhes seja favorável. Estamos perante um grupo extremista que não desiste dos seus objectos, por mais ignóbeis que eles sejam. A chantagem psicológica que exercem sobre os cidadãos é disso prova, além de que a sua argumentação assenta em premissas falsas, aliás, referidas no seguinte artigo de opinião (*) que transcrevemos do Público de hoje.
É falso que a despenalização da IVG tenha levado à utilização do aborto como método contraceptivo.
É falso que a despenalização da IVG tenha como consequência a liberalização do aborto.
É falso que o número de casos de aborto tenha vindo a aumentar.
Segundo a Direcção Geral de Saúde, enquanto entre 2002 e 2007 houve 14 mortes maternas “notificadas” relacionadas com aborto clandestino, em 2011 e 2012 não se verificou qualquer caso.
Uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos promovida pelo movimento “Direito a Nascer” vai ser amanhã discutida no Parlamento. O objectivo desta proposta é sobretudo alterar a Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), aprovada em 2007 (bem como as demais normas laborais, de protecção social, etc., relacionadas com esta questão), vinda na sequência do referendo em que 59,25% dos portugueses que foram às urnas afirmaram que o aborto realizado até às dez semanas de gravidez, por opção da mulher, devia ser despenalizado.
Nesta altura, a maioria dos portugueses considerou que o Estado não tinha o direito de proibir a IVG, nem de a penalizar (em nome de uma qualquer perspectiva moral que nunca seria generalizadamente partilhada). Ora, foi isto que a direita social nunca conseguiu aceitar e, por isso, o projecto-lei discutido amanhã vem, precisamente, propor uma série de mecanismos que funcionam como penalizações das mulheres que, dentro da lei, decidam recorrer à IVG.
Os promotores desta iniciativa legislativa procuram justificar-se e uma das razões para a sua iniciativa é o facto, dizem-nos, de a despenalização ter levado “à liberalização e promoção do aborto”. Nada podia ser mais falso. A IVG nunca foi liberalizada, mas apenas despenalizada até às dez semanas (além de se manterem os casos já anteriormente previstos na lei), garantindo-se que a mulher tem acesso a toda a informação médica e sobre as condições de apoio do Estado caso decida prosseguir com a gravidez, que terá um período de reflexão de três dias após a primeira consulta, que será posteriormente encaminhada para consulta de planeamento familiar.
Além disso, sabe-se que os números de casos de aborto têm vindo a diminuir e não a aumentar, ao contrário do que sugere a proposta. O estudo da Direcção Geral de Saúde, apresentado na semana passada, mostrou que se realizaram 16.589 abortos em 2014, menos 1.692 do que no ano anterior, o que corresponde a uma quebra de 9,3%, seguindo uma tendência que se verifica nos últimos anos. A taxa portuguesa de repetição de aborto é das menores do mundo e está abaixo da média europeia, sendo impossível dizer-se, como dizem os promotores desta iniciativa, que o aborto seja encarado como método contraceptivo.
A proposta do “Direito a Nascer” assenta, pois, em premissas não verdadeiras. E, lendo o seu texto, é fácil perceber que as mudanças legislativas apresentadas têm o intuito de criar novas formas de punição das mulheres. Desde logo, quer impor-se que a mulher que decida realizar uma IVG seja obrigada a ver e a assinar a ecografia que lhe é feita. Esta prática em nada contribui para a informação e esclarecimento da mulher e não há qualquer razão médica para que uma mulher, que optou – dentro da lei! – por realizar uma IVG, seja sujeita – pelo Estado que autoriza essa IVG! – a visualizar a ecografia, se isso for contra a sua vontade. A explicação para esta ideia é simples: continuar a penalizar as mulheres – se já não criminalmente, agora emocionalmente.
Um outro conjunto de propostas emblemáticas desta iniciativa do “Direito a Nascer” tem que ver com o facto de se procurar pôr fim ao direito a baixa médica, à justificação de faltas, ou à comparticipação de medicação, entre outras, se estas forem necessárias por razões de saúde da mulher. Todas estas medidas – que roçam a desumanidade – consistem, no fundo, em novas formas de punição das mulheres que optam por abortar nos termos da lei.
Esta iniciativa cidadã também defende o fim da isenção de taxas moderadoras na realização da IVG – uma ideia a que PSD e CDS parecem ter aderido, uma vez que vai igualmente discutir-se um projecto-lei, da sua autoria que visa o mesmo fim. Instituir o pagamento desta taxa irá dificultar o acesso a este cuidado médico e até de introduzir desigualdades nesse acesso, pois mulheres de menores rendimentos (ainda que não isentas do pagamento) ficarão necessariamente prejudicadas relativamente àquelas que dispõem de rendimentos maiores. Mesmo o argumento sobre a eventual “injustiça” de a IVG ser “gratuita”, enquanto outros cuidados médicos são alvo de taxa moderadora no SNS, talvez ele nos devesse levar antes a discutir se estes últimos não deveriam ser, também eles, gratuitos, em vez de procurarmos introduzir um co-pagamento na IVG. De qualquer modo, a justificação para a inclusão de taxas moderadoras na IVG não é financeira, sobretudo porque se sabe que uma grande parte das mulheres que a ela recorre estaria isenta do pagamento (por situação de desemprego, insuficiência económica, por serem estudantes, menores de idade). A justificação (encapotada) é, mais uma vez, moral.
A iniciativa legislativa contém outras propostas que vão no mesmo sentido: introduzir penalizações contra as mulheres que recorram à IVG. Consiste, por isso, num expediente para contrariar o espírito da lei que os portugueses democraticamente determinaram em referendo. E devemos, por isso, esperar que PSD e CDS se juntem aos partidos de esquerda na sua rejeição.
(*) Ana Rita Ferreira

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