domingo, 3 de dezembro de 2017

O POVO É A “CLIENTELA” COM QUE TODOS OS GOVERNOS DEVERIAM PREOCUPAR-SE


Como ainda esta semana afirmava Joana Mortágua em artigo de opinião no jornal i, “quando se viu sem assunto para criticar o Orçamento”, o PSD, revelando a “maior falta de vergonha na cara” veio referir as “clientelas” para as quais a actual solução governativa estaria a trabalhar. Acontece que, “estudantes, trabalhadores, pensionistas e contribuintes são, por definição, aqueles para quem se deve governar”, a esmagadora maioria da população, o povo.
Não sendo o desejável, nas actuais circunstâncias, o Orçamento do Estado de 2018 é a solução menos má para milhões de portugueses no sentido de trazer algumas melhorias para as suas condições de vida. Na realidade, são estes todos que constituem as “clientelas” com que, sem excepção, os governos se deveriam preocupar. Mas não é isso que acontece, como muito bem sabemos, e basta recordarmos, para não irmos mais longe, os elevadíssimos montantes que se gastam, por exemplo, para cobrir os desmandos provocados pela banca ou as rendas pagas às energéticas. Estes, sim, são “clientelas” que PSD e CDS muito bem conhecem…
É este o tema do excelente artigo de opinião –  todo ele atravessado por uma fina ironia – que Francisco Louçã assina numa edição do Público desta semana, cuja transcrição aqui deixamos.  
Já sabe do inquérito que aqui lhe estendo: de que clientela é vocelência? Porque a sociedade à beira mar plantada está dividida entre as clientelas, portanto malévolas e interesseiras, e os garbosos cavaleiros da virtude pátria. Todas as vozes autorizadas se conjugam nesta certeza, a de que as clientelas tomaram conta do fraco do primeiro-ministro e procedem a esventrar o orçamento, comendo-lhe nacos sangrentos, tudo num apetite que compromete o futuro de Portugal. É portanto de grande responsabilidade a escolha que vai fazer. Pondere antes de assinar, os credores estão de olho em si.
A sua primeira opção é a pior, fica já a saber. Se faz parte dos 210 mil que beneficiam da alteração do mínimo de existência, dos 1,3 milhões salários e pensões que pagarão menos IRS dado que a promessa dos novos escalões se cumpriu, dos 2,5 milhões de reformados que vão ser aumentados ou dos 600 mil funcionários públicos que têm as carreiras descongeladas, se é um dos 600 mil trabalhadores do privado cujo salário mínimo vai voltar a subir, se faz parte dos muitos milhões que usam o serviço de saúde e conseguirão médico de família e esperam a recuperação da qualidade dos tratamentos, se tem crianças que vão ter manuais escolares gratuitos e menos alunos por turma ou se recebe o abono de família, só tenho uma notícia tenebrosa para si: malandra, está a devorar o Orçamento, essa clientela é a vergonha do país.
A sua segunda opção é a melhor, vá por mim, assinale que é tudo boa gente. Se tem interesse na privatização dos aeroportos, na venda da TAP ou na concessão dos transportes de Lisboa e Porto, espera pela véspera ou até pelo dia seguinte a eleições, que um governo de gestão lhe vai fazer o despachozinho. Se tem uns dinheirinhos de lado, vai haver um apagão e 10 mil milhões voarão para offshores, se o seu banqueiro for dos tais é coisa garantida. Se tem amigos na mafia russa, um Visto Gold resolve o assunto, seja bem-vindo. Se comprou uns submarinos, já sabe que o Pai Natal está próximo. Se espera dividendos nas energéticas, a renda é confortável e, credo, ninguém lhe mexe. Se teve prejuízos no seu banco, talvez consiga que o Estado lhos pague ao longo dos próximos 19 anos. Isso não é clientela, não senhora, é tudo business.
Assim estamos, então. Invariavelmente, nesta luta sem tréguas pelas palavras, os que dizem “clientela” atribuem-se representação do interesse geral e fazem vénia a quem terçar pelos barões, pelo sr. Neeleman, pelo dono da EDP, por algum aventureiro que quer Visto, são os “investidores”.
Noves fora, um conhecido cientista político norte-americano, que ia pelo difícil nome de Schattschneider, escreveu uma vez o mais óbvio: “Há milhões de conflitos potenciais em cada sociedade moderna, mas só alguns se tornam significativos. A definição das alternativas é o supremo instrumento do poder. Quem determina sobre que é que é a política dirige o país”. Ou seja, quem determina as palavras com que se fala ou os temas que se discutem é o vencedor. É mesmo disso que se trata: se o discurso anti-“clientelar” conseguir marcar um cordão sanitário em volta da vida da maioria da população, patologizando as suas aspirações e fazendo com que os da fila da sopa dos pobres lamentem a desgraça do milionário que tem de pagar o “imposto Mortágua”, então a direita prevalecerá. Mas engana-se quem à direita pense que a batalha está ganha e espero que tome nota: a radicalização do PSD e CDS e de outros como partidos orgânicos dos interesses burgueses impõe-lhes um custo, se à esquerda se perceber que esta discussão exige a centralidade de uma estratégia de bipolarização. Vamos a isso, é tempo de atacar as clientelas sem dó nem piedade. Se se pergunta como serão estes dois anos para construírem uma esquerda que vença, eis a resposta. Bipolarização. Vida mais difícil para o centro? Sim.

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