domingo, 1 de abril de 2018

O COLONIALISMO COMO FORMA DE DOMINAÇÃO NÃO DESAPARECEU



Com o fim das ”lutas de libertação anticlonial” que tiveram lugar no século XX e consequente criação de muitos novos países, criou-se a ideia de que o colonialismo tinha terminado ou estava moribundo. Nada mais errado pois o domínio que as antigas potências coloniais “continuaram a deter sobre as antigas colónias” não só não foi eliminado como assumiu novas formas igualmente pérfidas mas com outras roupagens. O colonialismo como forma de dominação continua pujante nos nossos dias como afirma o Prof. Boaventura Sousa Santos num artigo de opinião que assina no Público desta sexta-feira e de onde retirámos o seguinte excerto.
O termo alemão Zeitgeist é hoje usado em diferentes línguas para designar o clima cultural, intelectual e moral de uma dada época, literalmente, o espírito do tempo. Na idade moderna, dada a persistência da ideia do progresso, uma das maiores dificuldades em captar o espírito de uma dada época reside em identificar as continuidades com épocas anteriores, quase sempre disfarçadas de descontinuidades, inovações, rupturas. O que permanece de períodos anteriores é sempre metamorfoseado em algo que simultaneamente o denuncia e dissimula e, por isso, permanece sempre como algo diferente do que foi sem deixar de ser o mesmo. As categorias que usamos para caracterizar uma dada época são demasiado toscas para captar esta complexidade, porque elas próprias são parte do mesmo espírito do tempo que supostamente devem caracterizar a partir de fora. Correm sempre o risco de serem anacrónicas, pelo peso da inércia, ou utópicas, pela leveza da antecipação.
Tenho defendido que vivemos em sociedades capitalistas, coloniais e patriarcais, por referência aos três principais modos de dominação da era moderna: capitalismo, colonialismo e patriarcado ou, mais precisamente, hetero-patriarcado. Nenhuma destas categorias é tão controversa quanto a de colonialismo. Fomos todos tão socializados na ideia de que as lutas de libertação anticolonial do século XX puseram fim ao colonialismo que é quase uma heresia pensar que afinal o colonialismo não acabou, apenas mudou de forma ou de roupagem, e que a nossa dificuldade é a de a nomear adequadamente. É certo que os analistas e os políticos mais avisados tiveram a percepção aguda desta complexidade, mas as suas vozes não foram suficientemente fortes para pôr em causa a ideia convencional de que o colonialismo propriamente dito acabara, com excepção de alguns poucos casos (o Sahara Ocidental, a colónia hispano-marroquina que continua subjugando o povo saharaui e a ocupação da Palestina por Israel). Entre essas vozes, saliento Pablo Gonzalez Casanova e o seu conceito de colonialismo interno para caracterizar a permanência de estruturas de poder colonial nas sociedades que emergiram no século XIX das lutas de independência nas Américas. E o líder africano, Kwame Nkrumah, primeiro Presidente da República do Gana, com o seu conceito de neocolonialismo para caracterizar o domínio que as antigas potências coloniais continuavam a deter sobre as suas antigas colónias.
O que terminou com os processos de independência do século XX foi uma forma específica de colonialismo, e não o colonialismo como modo de dominação. A forma que terminou foi o que se pode designar por colonialismo histórico caracterizado pela ocupação territorial estrangeira. Mas o modo de dominação colonial continuou sob outras formas. O colonialismo como modo de dominação assente na degradação ontológica das populações dominadas por razões etno-raciais está hoje tão vigente e violento como no passado. Às populações e aos corpos racializados não é reconhecida a mesma dignidade humana que é atribuída aos que os dominam. São populações e corpos que, pese embora todas as declarações universais dos direitos humanos, são existencialmente considerados sub-humanos, seres inferiores na escala do ser, facilmente descartáveis. Foram concebidos como parte da paisagem das terras "descobertas" pelos conquistadores, terras que, apesar de habitadas por populações indígenas, foram consideradas como terras de ninguém. Foram também considerados como objectos de propriedade individual, de que é prova histórica a escravatura. E continuam hoje a ser populações e corpos vítimas do racismo, da xenofobia, da expulsão das suas terras para abrir caminho aos megaprojectos mineiros e agro-industriais e à especulação imobiliária, da violência policial e das milícias paramilitares, do tráfico de pessoas e de órgãos, do trabalho escravo designado eufemisticamente como "trabalho análogo ao trabalho escravo", da conversão das suas comunidades de rios cristalinos e florestas idílicas em infernos tóxicos de degradação ambiental. Vivem em zonas de sacrifício, a cada momento em risco de se transformarem em zonas de não-ser.
As novas formas de colonialismo são mais insidiosas porque ocorrem no âmago de relações sociais dominadas pelas ideologias do anti-racismo, dos direitos humanos universais, da igualdade de todos perante a lei. O colonialismo insidioso é gasoso e evanescente, tão invasivo quanto evasivo, em suma, ardiloso. Mas nem por isso engana ou minora o sofrimento de quem é dele vítima na sua vida quotidiana. Floresce em apartheids sociais não institucionais mesmo que sistemáticos. Ocorre nas ruas e nas casas, nas prisões e nas universidades, nos supermercados e nas esquadras de polícia. Disfarça-se facilmente de outras formas de dominação tais como diferenças de classe e de sexo ou sexualidade. Verdadeiramente só é captável em close-ups, instantâneos do dia-a-dia. Em alguns deles, o colonialismo insidioso surge como saudade do colonialismo, como se fosse uma espécie em extinção que tem de ser protegida e multiplicada.

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