terça-feira, 24 de abril de 2018

O NOSSO SISTEMA JUDICIAL PERANTE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA


As decisões que o nosso sistema judicial tem vindo a tomar sobre casos de violência doméstica são o ponto de partida para o artigo de opinião que a deputada do Bloco de Esquerda, Sandra Cunha, assina no Público de hoje. Do mais conhecedor ao menos entendido em questões de natureza jurídica, dificilmente é possível encontrar alguém que consiga perceber certas penas relativas a acções da mais pura e injustificável violência de homens contra namoradas/esposas, como foi o recente caso vindo a público da decisão do “Tribunal da Relação de Guimarães que reduziu e suspendeu a pena a um jovem condenado a seis anos de prisão por atacar à facada a ex-namorada”.
E eis que acaba de estrear mais um capítulo da novela de horrores que é a forma como o nosso sistema judicial, e os nossos magistrados, decidem sobre casos de violência doméstica.
Desta feita, foi o Tribunal da Relação de Guimarães que reduziu e suspendeu a pena a um jovem condenado a seis anos de prisão por atacar à facada a ex-namorada. O motivo terá sido o ciúme. De acordo com o entendimento deste tribunal, não obstante o ciúme ser um motivo “muito reprovável”, não será, todavia, “fútil”, na medida em que “não é irrelevante ou insignificante” nem “torpe”, ou seja, “vil e abjeto”. Esfaqueou a ex-namorada? Que horror! Mas foi por ciúmes? Então está bem. Afinal, quem nunca sentiu um arremedo de ciúmes e desatou à facada ao seu ou sua mais que tudo que atire a primeira pedra!
Para sustentar a decisão, este magistrado socorre-se da arte, da literatura, do cinema e do teatro, para argumentar que têm desde sempre retratado o ciúme como motivo de assassinato, concluindo por isso que este tem sido “universal e intemporal”. Supostamente isso deverá explicar e desculpabilizar tudo.
No acórdão, a personalidade do arguido é caracterizada por “egocentrismo, comportamentos ciumentos em relação à namorada e incapacidade de, no caso concreto, aceitar a decisão desta em não reatar a relação de namoro”. É também destacado que, em julgamento, “o arguido não mostrou sincero arrependimento nem demonstrou ter interiorizado devidamente o desvalor da sua conduta”. Mas mesmo assim, apesar de tudo isto e dos factos assumidos, o tribunal escolhe desculpabilizar o agressor e legitimar a agressão.
Esta tragicomédia judicial revela-se no seu máximo expoente quando sabemos que o recurso a argumentos que fariam corar de vergonha qualquer magistrado que se queira orgulhar da justiça e isenção das suas decisões não é novo nem acto isolado. Recorde-se que ainda recentemente foram noticiados pelos órgãos de comunicação social outros dois acórdãos absolutamente inacreditáveis, pejados de juízos moralistas e machistas e que certamente chocaram qualquer pessoa de bom senso neste país.
O primeiro, da autoria do coletivo de juízes constituído por Neto Moura e Maria Luísa Arantes, do Tribunal da Relação do Porto, confirmou a suspensão da pena a um arguido que terá agredido violentamente a mulher com recurso a uma moca com pregos. Sem qualquer pudor, os magistrados ampararam-se no singelo argumento de que o adultério da mulher constituiria um “gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”, bastando isso para explicar e absolver a violência. Para justificar o injustificável, os magistrados socorreram-se ainda de excertos da Bíblia, em que se pode ler que “a mulher adúltera deve ser punida com a morte”, e do Código Civil de 1886, que “punia com uma pena pouco mais do que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”.
O segundo acórdão, assinado pelo juiz Carlos de Oliveira, do Tribunal Judicial de Viseu, considerou que a vítima de violência doméstica, tendo denotado em audiência de julgamento “ser uma mulher moderna, consciente dos seus direitos, autónoma, não submissa, empregada e com salário próprio, não dependente do marido (...), dificilmente aceitaria tantos actos de abuso pelo arguido, e durante tanto tempo, sem os denunciar e tentar erradicar, se necessário dele se afastando.” A vítima, jovem, mulher moderna e autónoma, não encaixou, portanto, na visão idealizada e formatada de vítima deste juiz e, logo, a sua versão não foi considerada crível, não obstante todas as testemunhas e provas apresentadas.
Não será extemporâneo supor que muitos mais acórdãos como este existirão nos tribunais portugueses. A prova encontramo-la nos 70% de casos de violência doméstica arquivados e nos 90% de penas suspensas.
Esta persistente naturalização da violência é absolutamente inaceitável e intolerável. Isto tem de ter um fim. Não podemos continuar em silêncio enquanto as vítimas são desacreditadas, humilhadas, desprotegidas e violentadas pelo mesmo sistema que premeia os agressores e a violência porque a desculpabiliza, legitima e naturaliza.

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