quinta-feira, 26 de abril de 2018

SNS: COMO NASCEU E COMO É PRECISO QUE CONTINUE



Tem sido muitas vezes referido que, sem o 25 de Abril não haveria Serviço Nacional de Saúde (SNS) e é a mais pura verdade. Apenas com o advento da democracia foi possível criar em Portugal um sistema de saúde que chegou a estar entre os 15 melhores do mundo.
A degradação do SNS a que agora se assiste deve-se a uma série de medidas políticas de direita quer pela mão do PS quer da autoria do PSD/CDS que, aos poucos, desvirtuaram o modelo inicial no sentido de uma crescente mercantilização da saúde.
O projecto de lei para criação de uma nova Lei de Bases da Saúde do BE, tem como finalidade alterar a situação actual fazendo regressar o SNS à sua matriz inicial.
De um artigo de opinião da historiadora Raquel Varela, no “Público” de ontem, onde é feita a história resumida de SNS assim como uma projecção para o futuro, retirámos os seguintes excertos.
Um sistema de excelência – que chegou a colocar Portugal entre os 15 melhores sistema de saúde do mundo – só vai ser possível com a criação de um sistema planificado, centralizado e unificado à escala nacional após revolução de 1974 e 1975 – o Serviço Nacional de Saúde, institucionalizado em 1979. Fomos todos SNS.
Se em Inglaterra serão os enfermeiros, com a sua experiência na II Guerra, que vão ser uma das forças propulsoras do National Health Service, em Portugal este papel é centralmente realizado pelos médicos em 1974-1975 e nos anos seguintes. Anatematizados durante tantos anos como corporação, foram eles na verdade que fizeram pressão para existir uma carreira médica, desde o início dos anos 60. Carreira médica que só era possível num SNS que servisse todo o país, o que a revolução tornou possível. Com a revolução há uma transferência de rendimento do capital para o trabalho, segundo dados oficiais, de 18% – a maior de sempre da nossa história –, esse ganho é sobretudo em salário social, ou seja, em serviços públicos. O interesse corporativo dos médicos lutarem por si próprios era na verdade só possível de ser realizado pelo interesse da nação em ter um sistema de saúde universal e gratuito, lutando por todos. Por isso têm sido os médicos, e outros profissionais de saúde, os que mais resistem à sua mercantilização. Mais do que os utentes.
(…)                                                                     
A 16 de Maio de 1974 é criado o Ministério dos Assuntos Sociais, que junta o antigo Ministério da Saúde e a pasta da Segurança Social. O médico António Galhordas, membro da comissão de elaboração do relatório sobre as carreiras médicas, é chamado para desempenhar funções de secretário de Estado da Saúde (até Julho de 1974). O segundo passo para centralizar os serviços de cuidados de saúde numa única estrutura é dado em Novembro de 1974 com a passagem dos serviços médico-sociais para a alçada da Secretaria de Estado da Saúde. Era então secretário de Estado da Saúde Carlos Cruz de Oliveira. São também desse período as primeiras acções para trazer para o Estado o controlo de instituições particulares como as Misericórdias. Em entrevista que me deu antes de morrer, o antigo secretário de Estado da Saúde, Cruz de Oliveira, relatou-me: "Eu tinha a ideia de que havia uma medicina estatizada e uma medicina particular; a estatizada, o Estado tratava dela; a particular, eles faziam o que queriam, mas não vamos lá misturar estas coisas! Quem quer particular vai, mas depois não venham cá pedir ao Estado. Nacionalizei quando estava no Governo os hospitais todos das Misericórdias (a maioria da Igreja), por decreto, com a ideia de juntar companhias de seguros, hospitais conde não sei o quê, centros de saúde, num único sistema."
(…)
Ninguém nega a complexidade da gestão da saúde e os novos desafios que se colocam como a híper urbanização, o envelhecimento da população, etc. Mas não se pode correr riscos de naturalizar problemas sociais e políticos. Hoje os custos são mais altos mas a produtividade média do trabalho é quase cinco vezes superior há que existia há 40 anos atrás. Temos mais custos, temos mais problemas mas temos muito mais capacidade para os resolver. Não estamos só perante novos problemas constantes intermináveis, como afirmou Marcelo Rebelo de Sousa. A maioria dos problemas do SNS estão identificados, as soluções são conhecidas, há meios e (ainda) há conhecimento para os resolver.
Menos de metade dos médicos portugueses trabalhavam há dois anos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) – são formados muito mais médicos pelo SNS do que aqueles que ficam a trabalhar nele. Há um aumento das horas de trabalho acima do aumento de profissionais, sobretudo na fase pós Memorando de Entendimento, ou seja, faz-se mais pagando menos. O cenário hoje antevê uma escassez dramática de força de trabalho – que já existe e vai piorar se não se investir rapidamente naquilo que de mais importante um país tem e que é o centro da prestação de serviços públicos, cuidar de quem os assegura. O pacto do Estado Social era a universalização de serviços públicos mediante impostos progressivos, não era transformar dívida privada em dívida pública. Não somos todos Centeno.
Sem se mudar duas questões chave nenhum pacto para a saúde vai evitar a sua degradação – elas são a gestão democrática e a exclusividade com salários dignos, com o fim dos hospitais EPE/SA. Precisamos de um serviço público unificado, nacional, gratuito que não entre em concorrência consigo próprio. Temos, além disso (ainda temos, não por muitos mais anos), algo raro em todo o mundo, afirmo-o sem sombra de dúvida – os nossos médicos sabem gerir um SNS, isto porque foram eles que o construíram quando não havia quadros para tal. Este é o país onde mais médicos escrevem sobre a gestão da sua profissão e dos seus serviços – desejaria eu que outros sectores tivessem este saber-fazer (talvez os quadros mais velhos do ensino). E isso é magnífico.

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