(…)
Já lá estava a guerra
infinita e o “novo século americano”. Uma e outro eram os enunciados dos
neoconservadores que chegaram ao poder com o segundo Bush e que desencadearam a
ocupação do Afeganistão e depois do Iraque.
(…)
Guerra infinita, é uma
mudança sem retorno.
(…)
A guerra publicitada à
exaustão, a imagem de uma turma de crianças morta em cada dia em Gaza, as
pessoas a esvaírem-se em sangue e lágrimas, nada disso é uma mera expressão da
verdade televisionada – é uma exibição do argumento do medo.
(…)
A amputação dos direitos
universais é o segundo caminho sem retorno.
(…)
[Há ainda outra mudança em
curso que é] a deslocação de sectores importantes da burguesia para o
financiamento e a instrumentalização miliciana da extrema-direita.
(…)
Os mandarins da
comunicação precisam de governos subordinados que blindem o seu poder. E essa é
outra mudança sem retorno.
(…)
A luta pela paz não será
equiparável à dos anos 1980, a da democracia não será como a das sufragistas, a
dos movimentos populares não repetirá a de 1917, 1936, 1945 ou 1968. É um
caminho com escassa bússola.
Foram
precisos 33 anos de democracia e dois referendos para que Portugal
descriminalizasse a interrupção voluntária da gravidez (IVG).
(…)
A
lei foi aprovada em 2007 e foi uma enorme vitória das mulheres.
(…)
Nestes
18 anos, terminou a humilhação das mulheres levadas a tribunal. E, com isso,
Portugal tornou-se num país mais decente.
(…)
Passados
18 anos, é altura de aperfeiçoar a lei e assegurar que esta pode ser cumprida.
(…)
Os
obstáculos de acesso à IVG são reais. Há mulheres que se deslocam aos hospitais
da sua área de residência e a quem lhes é negado o acesso a consulta prévia.
(…)
Por
fim, o prazo de dez semanas é um dos mais restritivos na Europa no que toca à
IVG.
(…)
Alemanha,
Espanha, Bélgica, Luxemburgo e Roménia permitem-na até às 14 semanas.
(…)
Se
Portugal conseguiu dar um passo de gigante em 2007, não podemos, em 2025,
ignorar que esse direito está a ser comprometido.
O
imperialismo do século XVIII e XIX está de volta nas mãos de Donald Trump como
se o ramo imobiliário invadisse o direito internacional para licitar
territórios, soberanias e questionar a autodeterminação dos povos.
(…)
O
impossível tem acontecido com uma sucessão assustadora de previsibilidade sobre
o que é abjecto.
(…)
Ninguém
verdadeiramente quer saber de algo senão do alimento informativo sem
contrafactual que lhe é servido, um festim e um regalo para os ditadores e
déspotas.
(…)
O novo politicamente correcto é a distribuição pretensamente
libertadora de mentiras, falsos julgamentos e farsas factuais ou temporalmente
desinseridas da cronologia.
(…)
Mais do que o reconhecimento do “Triunfo dos porcos”, de
Orwell, terá de significar um desafio crítico para o pensamento de uma Europa
que tem mesmo de decidir se é capaz de um súbito reconhecimento de autoestima
ou se definhará.
O
mundo mantém-se unido graças ao amor e à paixão de muito poucas pessoas, dizia
James Baldwin. Algumas dessas pessoas estarão presentes neste sábado, dia 11 de
janeiro, na manifestação “Não
nos encostem à parede”
(…)
São ainda poucas as pessoas que realmente lutam
por um mundo mais justo e igualitário.
(…)
É a
estas poucas pessoas, que muitas vezes sacrificaram a própria vida, que devemos
grande parte dos direitos de que hoje usufruímos e tomamos como garantidos.
(…)
Em
2025, segundo a ONU, ainda nenhum país no mundo atingiu a igualdade de
género, e a este ritmo precisaríamos de esperar mais 300 anos para a poderemos
alcançar.
(…)
Imagine-se então em que nível de desigualdade
estaríamos hoje sem as chatas das feministas.
(…)
A
desunião do mundo também se deve, em grande medida, ao ódio e à violência de um
pequeno número de pessoas com poder, capazes de arrastar consigo muitas outras.
(…)
Jean-Marie Le Pen, patriarca da extrema-direita
em França, falecido esta semana aos 96 anos [não] deixa
saudades por causa dos seus vínculos com grupos nazis e neonazis, pelas suas
declarações, que lhe valeram várias condenações, de incitação ao ódio,
revisionistas, negacionistas, antissemitas, racistas, xenófobas, islamofóbicas,
LGBTfóbicas.
(…)
Jean-Marie
Le Pen não me deixa saudades, mas tenho saudades de um tempo em que estes
líderes da extrema-direita diziam, sem qualquer pudor, ao que vinham.
(…)
Saudades
do tempo em que o choque de ver a extrema-direita chegar pela primeira vez à
segunda volta das presidenciais francesas em 2002 fez, como eu, milhões de
pessoas saírem às ruas para protestar.
(…)
Saudades
do tempo em que se organizavam petições em larga escala para proibir partidos
de extrema-direita porque ainda não se tinha esquecido o que realmente
significavam e qual era o seu perigo.
(…)
Saudades
de quando a direita republicana defendia o cordão sanitário contra a
extrema-direita. De quando acreditávamos que, em Portugal, nada disso seria
possível.
(…)
Saudades
de quando, por causa da nossa Constituição, a comunicação social internacional
se referia ao nosso país como um “oásis democrático”.
(…)
Não,
não tenho saudades do Jean-Marie Le Pen, mas tenho saudades da urgência e da
convicção com que, naquele tempo, levávamos a sério o que representava.
Luísa Semedo, “Público” (sem link)
Sem comentários:
Enviar um comentário