segunda-feira, 3 de abril de 2017

A PERIGOSA IGNORÂNCIA E SEUS ZELADORES


Quem gasta com regularidade algum do seu tempo a ver concursos televisivos de cultura geral apercebe-se muitas vezes da falta de conhecimentos que grassa entre os concorrentes, especialmente na faixa etária abaixo dos 50 anos. Também se suspeita que o mesmo acontecerá entre quem elabora as perguntas, mais por omissão do que por acção. Estamos a lembrarmo-nos, por exemplo, do reduzido número de questões que se colocam na área da matemática e, mesmo assim, revelando um significativo amadorismo na forma como são definidas, sintoma da falta de conhecimento de quem as elabora. Organizar questões a partir de uma Enciclopédia, sobre bandas de música, filmes, futebol ou actualidade, tem um grau de dificuldade muito mais baixo e corre-se um risco muito menor de falhar…
O texto seguinte é um excerto de um excelente artigo de opinião de Pacheco Pereira que podemos ler no Público de hoje e que tem como pano de fundo a perigosa vaga de ignorância que hoje alastra pelo mundo.
O problema actual da ignorância é que a ignorância nunca teve tão boa imprensa, tão bons defensores, tão arrogantes cavaleiros contra o saber, como nos dias de hoje. Um destes frutos da nova ignorância é Presidente dos EUA, e acha que tudo o que é preciso saber para se ter sucesso é conduzir o país ao modelo dos seus negócios predadores, e das ideias racistas e xenófobas que nascem nos lugares mais infectos das redes sociais. E estando ele onde está, escolhe os seus colaboradores ao mesmo modelo, que escolherão os altos funcionários pela mesma bitola – na verdade "comissários" destinados a zelar pelo #MAGA – e por aí adiante, embrutecendo a sociedade de cima para baixo, dando toda a razão ao ditado popular de que o “peixe apodrece pela cabeça”. A dissolução de todos os padrões que implicavam que era preciso saber alguma coisa de ambiente, de comércio internacional, de política externa, de educação para se exercerem funções nessas áreas explicam por que razão a “desconfiança do conhecimento” (“distrust for expertise”) e a dissolução da verdade (“fake news”) são hoje os critérios de funcionamento da administração Trump. E enganam-se todos os que não percebem que estas atitudes são modernas, moderníssimas, tanto como o último telefone inteligente, para usar uma comparação apropriada.
E não é só nos EUA, também cá temos cada vez mais activos zeladores da ignorância que querem colocar uma bola onde costumava, quando os animais falavam, estar uma cabeça humana. As ideias circulantes de que se substituem “literacias”, como agora se diz, que “já nada dizem” aos jovens de hoje (e aos adultos diga-se de passagem), por outras “literacias” que as substituem e são “mais apelativas” porque se podem digitar num telefone, ou numa mensagem de 140 caracteres, ou “postar” como fotografias de comida, ou a loquacidade vazia e deprimente do WhatsApp, destinadas a substituir a sociabilidade presencial pela sociabilidade virtual, são instrumentais para justificar a ignorância e varrer dos currículos tudo aquilo que parece inútil, substituindo o conhecimento pela tagarelice e pelo generalizado défice de atenção.
Não. Os conhecimentos não se substituem uns aos outros, complementam-se. E o que falta, faz sempre falta. Várias vezes me interrogo como é possível atirar alunos do secundário para ler Os Maias, ou seja que obra for de Eça, ou Camilo, ou Camões, ou Gil Vicente, ou Nemésio, ou Jorge de Sena, ou seja lá que obra literária que é suposto ler-se no secundário e nos anos de escolaridade obrigatória, sem saber nada de mitologia grega ou da Bíblia, já para não falar do rico vocabulário do português que não cabe numa mensagem do Twitter. Não sei, aliás, por que se pensa nos nossos dias que “não cabe” na cabeça das pessoas muita coisa. É irónico que a modernidade nos forneça discos rígidos com terabites de espaço, e pareça encolher-nos as cabeças.

Sem comentários:

Enviar um comentário