No dia
19 de Dezembro de 2023 acordei em Jenin (norte da Cisjordânia), após mais uma
invasão israelita. As ruas estavam rebentadas de fresco, crateras e montanhas
de lama, jorros de esgoto.
(…)
Jenin é um bastião da resistência palestiniana, chamam-lhe A
Pequena Gaza.
(…)
Mas
esse 19 de Dezembro foi também o dia em que um homem, por sorte médico, teve de
amputar a perna da sua sobrinha sem anestesia, em cima da mesa da cozinha.
(…)
Um ano
depois, já não me lembrava ao certo onde estava. Fui verificar agora, quando vi
a data dessa amputação no mais exaustivo relatório que um indivíduo fez desde 7
de Outubro.
(…)
[Esse relatório]
chama-se Bearing Witness to the
Israel-Gaza War e é um trabalho escrito e compilado pelo
israelita Lee Mordechai, historiador da Universidade Hebraica de Jerusalém,
doutorado em Princeton.
(…)
Em
Março de 2024, o documento tornou-se viral no ex-Twitter em hebraico. Mordechai
ampliou o alcance: para seja quem for que queira saber.
(…)
Viu milhares de imagens horríveis. Não as mostra no texto, dá
os links.
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Considera
o ataque do Hamas e outros grupos a 7 de Outubro uma atrocidade. Tal como
considera a resposta de Israel um genocídio, e no fim explica porquê.
(…)
Quem
acompanha os incontáveis testemunhos que eles [palestinianos] nos têm dado do
seu próprio holocausto, sobretudo pelo Instagram, vai reconhecer centenas de
momentos no relatório de Mordechai.
(…)
Idem
para quem segue as agências e tribunais da ONU, a Human Rights Watch, a Amnistia Internacional e muitas outras
organizações, incluindo israelitas. Uma sucessão de horrores e recordes.
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Sofrimento contínuo e atroz de centenas de milhares de
mutilados, queimados, doentes.
(…)
Mas
talvez a parte mais singular do relatório, pelo próprio facto de [Mordechai]
ser israelita e falar hebraico, seja o que ele expõe sobre Israel, o ponto a
que chegou a desumanização dos palestinianos.
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Diz Mordechai: a desumanização dos palestinianos é o que
permite este horror.
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Resumo: a grande maioria dos israelitas que não quer saber a
verdade (as muitas verdades além da propaganda).
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Aliás,
uma das últimas actualizações de Mordechai diz respeito à limpeza étnica do
norte de Gaza, nestas últimas semanas de 2024, depois de uma líder dos colonos
ter ido a Gaza, escoltada pelos soldados.
(…)
Há
instruções escritas para esta limpeza étnica? Para o genocídio? Que se saiba, não.
O que só convém às lideranças, como diz Mordechai, acautelando futuros
julgamentos.
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Milhões foram gastos em propaganda para destruir críticos de
Israel (incluindo a ONU), comprar vozes pró-Israel, multiplicar histórias falsas.
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Como eram falsos os 40 bebés decapitados do 7 de Outubro, ou
as violações em massa do Hamas.
(…)
Esta
crónica sai um ano, dois meses e vinte e um dias depois disso [7 de outubro], e
é o que continuo a achar, [Israel acabou] mas hoje de forma mais detalhada.
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O que quero dizer é que a ideia de Israel acabou.
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Israel
é hoje um estado pária para qualquer pessoa que queira realmente saber o que
aconteceu desde 7 de Outubro.
(…)
Os
jovens do mundo que acordaram para Israel/Palestina a 7 de Outubro não entendem
como foi possível um país ser fundado à custa de um povo.
(…)
Muito
menos como é possível um povo ser exterminado nos nossos telemóveis, com a
ajuda dos nossos governantes. Porque é que um único país no mundo faz o que
quer na ONU, incluindo cortar-lhe as pernas, banir o secretário-geral. Porque é
que um povo parece valer mais do que qualquer outro. E porque é que os
palestinianos valem menos do que Israel, a América ou a culpa da Europa. Numa
palavra: racismo (étnico, religioso, cultural).
(…)
[Israel funda-se na mentira] na destruição de outro povo. Na
mentira de que era uma terra sem povo para um povo sem terra.
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O
Hamas derrotou Israel no dia 7 de Outubro. Com um massacre contra civis, na sua
maior parte, tal como milícias sionistas pré-Israel foram terroristas, e muitos
outros movimentos recorreram ao terrorismo sem se resumirem a isso.
(…)
Eu já não tinha ilusões sobre o Hamas. Simplesmente é um erro
resumi-lo como terrorista.
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A
sociedade israelita viveu o maior trauma de sempre a 7 de Outubro. E a gente
que hoje a lidera viu nisso uma grande oportunidade para concluir a Nakba de
1948, a Naksa de 1967.
(…)
Os
israelitas não vão recuperar como país do que fizeram, do que viram, e do que
não fizeram e não quiseram ver.
(…)
[Israel
é] uma sociedade doente, cada vez mais incapaz de reconhecer o outro, os
outros.
(…)
Israel perdeu o mundo.
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Não há
futuro num Estado fundado na desumanização de outros. O começo de Israel já era
o fim de Israel.
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O 7 de Outubro gerou a desumanização definitiva. O futuro é
da Palestina ou não será.
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Agora Gaza é o mundo.
(…)
Daqui
a um mês, a 27 de Janeiro de 2025, Netanyahu não irá aos 80 anos da libertação
de Auschwitz porque tem medo de ser preso por crimes contra a Humanidade.
(…)
Auschwitz não merece o homem que desde 7 de Outubro preside a
Auschwitz-agora-em-directo. Uma criança morta por hora.
(…)
A verdade
mais difícil está por escrever porque, ao mesmo tempo que o horror nunca foi
exposto como desde 7 de Outubro, ainda falta muito.
(…)
Esse
horror não seria possível sem as bombas e os milhões dos EUA. Biden é um
criminoso de guerra. Como Scholz, Ursula, a maior parte da UE (com três ou
quatro países a fazerem a diferença).
(…)
O mundo que permite que se extermine um povo em nome de Deus,
e ainda se considera religioso.
(…)
Presidente
Marcelo Rebelo de Sousa, primeiro-ministro Luís Montenegro, ministro dos
Negócios Estrangeiros Paulo Rangel, restantes ministros: vão continuar a ser
cúmplices de um genocídio?
(…)
E que vão fazer quando os vossos filhos ou netos vos
perguntarem que fizeram contra isto?
Alexandra Lucas Coelho, “Público” (sem
link)