A
imprensa de hoje faz-se eco da manifestação que ontem teve lugar em Barcelona,
contra o terrorismo, depois dos atentados da semana passada que causaram (até
ao momento) 15 mortos e mais de 120 feridos, numa iniciativa onde, pela
primeira vez, esteve presente o rei espanhol, a par de cerca de meio milhão de
pessoas.
O
lema da manifestação foi “não temos medo” mas não tenhamos a mais pequena
dúvida de que foi o medo que fez juntar cerca de 500 mil pessoas.
Sempre
que há um ataque terrorista no mundo ocidental, levado a cabo por radicais islâmicos,
ouvem-se e lêem-se comentários muito variados na imprensa falada e escrita mas,
na maior parte dos casos, a superficialidade do que é afirmado constitui a
tónica dominante. Fica assim a sensação de que o mais importante não foi dito
para explicar como se chegou à situação actual.
O
excelente artigo de opinião de Manuel Loff no Público de ontem, que reproduzimos
a seguir, traz à luz alguns factos fundamentais que dão uma forte ajuda para
compreendermos por que razão ainda não foi possível derrotar ou, pelo menos, reduzir
significativamente o perigo representado do terrorismo islâmico.
Um ataque ao "nosso modo de
vida", o modo de vida "ocidental". Este foi o discurso que tomou
conta dos media a propósito do atentado de Barcelona. É curioso que
no-lo expliquem assim. Antes de mais porque são os governos ocidentais (e
Israel, e a Rússia, e a Índia...) que asseguram desde há anos que estamos em
"guerra", no que em tudo coincidem com os jihadistas que têm matado
gente, cidadãos comuns, em ruas, aeroportos, comboios... Ora todas as guerras,
desde pelo menos a guerra de Espanha, são feitas antes de mais de violência
deliberadamente aleatória sobre não combatentes, a população civil. Ainda por
cima, Barcelona é uma daquelas raras cidades que se já visitou ou que se gostaria
de visitar e todo o horror de nós se aproxima quando, como me aconteceu, temos
amigos que, de passagem por Barcelona, como milhares de outros, passeavam pelas
Ramblas e por pouco não foram apanhados, outros que na cidade vivem e que,
trabalhando em hospitais, tiveram de tratar das vítimas. Se subscrevermos esta
tese de que o que nestes atentados se agride é o "nosso modo de vida"
(como se ele fosse feito, como gostaríamos, de coexistência na diversidade
étnica e cultural em plena liberdade e igual dignidade), até nós embarcamos na
mistificação de que estamos em guerra - isto é, nós, os cidadãos comuns que,
aqui como na Síria, no Iraque ou no Iémene, pagamos o preço da violência, e não
apenas essa clique de governantes, militares, serviços secretos e comentadores
do "choque de civilizações". Esses, sim, declararam guerra ao que
julgávamos ser o "nosso modo de vida", pretextando a segurança
antiterrorista para nos vigiar e controlar, para substituir bem estar social
por um quotidiano de armas, medo, manipulação e guerras intermináveis em nosso
nome.
Esta retórica do Ocidente invejado e
permanentemente ameaçado, tão velha quanto velha foi a aventura colonial,
deveria presumir uma guerra sem quartel contra quem alimenta este fanatismo
violento. Nos discursos oficiais é o que se nos diz. E contudo... E contudo
hoje mesmo, em Barcelona, o Rei de Espanha presidirá à manifestação de
solidariedade com as vítimas de um atentado perpetrado por salafistas há anos
massivamente apoiados pela Arábia Saudita com cuja família real os Borbons,
desde o início do reinado de Juan Carlos, mantêm uma "profunda e duradoura
amizade". Ao seu lado, estará Rajoy, sob cujo governo a Espanha passou a
ser o 3.º vendedor de armas aos sauditas (Público.es, 24.8.2017).
Não saberá o governo espanhol com quem
lida? Claro que sabe! Há muito que todos sabem dos laços entre membros do
governo e da família real saudita com a al-Qaeda desde o 11 de setembro - e
hoje com o Estado Islâmico (EI). O pouco que se divulgou das investigações do
próprio Congresso dos EUA é mais do que suficiente para o comprovar. Isso não
impediu que Obama vetasse há um ano a resolução do Congresso que teria
permitido às famílias das vítimas do 11 de setembro processar o governo saudita
pelas suas "ligações" com os terroristas (Politico, 22.9.2016). Ou
que Hillary Clinton que em 2014, pré-candidata presidencial, se mostrasse
preocupada com as provas do apoio do Qatar e dos sauditas ao EI, sem que,
contudo, isso impedisse a Fundação Clinton de receber, segundo a própria, 10 a
25 milhões de dólares do governo saudita e que o do Qatar lhe tenha oferecido
um milhão só pelo aniversário de Bill Clinton em 2016 (Independent,
4.11.2016). Trump acha que o Qatar “tem sido historicamente um financiador do
terrorismo ao mais alto nível” - e bate recordes de venda de armas à Arábia
Saudita. Muita clareza, portanto, na defesa dos "valores do
Ocidente"!
"Não se arrepende de ter apoiado o
integrismo islâmico, de ter dado armas, de ter aconselhado futuros
terroristas?", perguntou em 1998 o Nouvel Observateur a Zbigniew
Brzezinski (conselheiro de Jimmy Carter para a segurança nacional nos anos 70)
a propósito do apoio norte-americano aos talibãs e a Bin-Laden contra os
soviéticos no Afeganistão. "Para a história mundial, o que é mais importante?
Os talibãs ou a queda do Império soviético? Uns quantos islamistas excitados ou
a libertação da Europa Central e o fim da guerra fria?" (Nouvel
Observateur, 15.1.1998)
Assim sim, estamos esclarecidos!
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