quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

REVERTER (TIMIDAMENTE) O CIRCUITO DA REDISTRIBUIÇÃO


Numa altura em que acaba de ser aprovado o Orçamento do Estado de 2016, com o suporte da esquerda parlamentar, não tenhamos a menor dúvida que os donos disto tudo instalados em Bruxelas irão levar a cabo uma guerrilha permanente contra o Governo português que teve a ousadia de, ainda que de forma muito tímida, pôr no papel a intenção de iniciar uma política redistributiva ao contrário da levada a cabo pela anterior maioria de direita. É este o ponto central do artigo de opinião que Isabel do Carmo, Médica e Professora Universitária, assina no Público de hoje e que transcrevemos em parte, a seguir.
Tanto o Estado Social como o Estado Austeritário baseiam a sua estrutura económico-financeira sobre os impostos. O que se tem que analisar é de quem tiram e para onde tiram. E em qual dos conceitos é que se baseia o poder instalado em Bruxelas e nos “mercados”, quando tomam a nova solução governamental portuguesa como um inimigo a perseguir, tanto mais quanto pode ser um mau exemplo.
O fundamento do Estado Social estabelecido na Europa depois da II Guerra Mundial, pelo qual lutaram trabalhadores e o Partido Trabalhista na Grã-Bretanha e os Partidos Socialistas e Sociais-Democratas do Norte europeu, consiste numa forma de redistribuição do rendimento em que se vai buscar impostos a um lado, para tornar possível um Orçamento de Estado disponível para uma estrutura social com saúde e ensino universais e gratuitos e uma segurança social assegurada. É uma estrutura da sociedade que não é revolucionária, nem socialista, nem aspira ao comunismo. É uma forma de compensar as desigualdades de nascimento, de família, de habitação, que são de base no sistema capitalista em que vivemos. É esta coincidência de propósito dos programas dos quatros partidos em acordo parlamentar, embora com modos e tempos muito diferentes, que julgo estar na base da governação possível. Mas a ordem mundial não está para Estados Sociais. Após as turbulências dos anos sessenta e setenta do século XX, Margaret Thatcher em 1979 e Ronald Reagan em 1980 iniciaram o contraciclo que se mantém triunfante. Não é preciso detalhes para descrever os efeitos do reino da Wall Street e da City, dos “mercados”, da concorrência, do individualismo, para a vida quotidiana, o desemprego, a pobreza, a ansiedade das pessoas. Triunfou o aprofundamento das desigualdades, no mundo e em cada país. A realidade está aí. A União Europeia, que era um sonho do pós-guerra que não foi cumprido, teve a mesma evolução. As suas estruturas e actores de topo estão lá como guardiães de um mundo, que não vive para os seres humanos, mas sim para as mercadorias, sendo que a mercadoria-dinheiro já não tem presença física, é virtual. Mas é poder. Somos portanto governados à distância. Com o governo austeritário, os impostos passaram a ter um grande peso sobre o rendimento do trabalho, as pensões, as reformas, os funcionários públicos. Os cortes foram feitos nos serviços de Saúde e na Educação. E serviram para pagar os juros da “dívida”, para diminuir o “défice” (calculados como e quando?). Isto é, o circuito fez-se ao contrário do da redistribuição social – tirou-se aos pobres e “remediados”, que passaram a pobres. E deu-se a um poder mundial sem rosto.
E é esta a ordem das coisas em Bruxelas, mesmo que haja contradições e alguns executores sejam “socialistas”. Para a população, os impostos e os cobradores de impostos passaram a ser o inimigo e desconfia cada vez mais do Estado, grande parte não percebendo que a Saúde, a Educação e os seus agentes também são Estado.
Com esta lógica, as propostas da nova governação à esquerda só podem ser combatidas pelo poder centrado em Bruxelas. Este Orçamento repõe os salários dos funcionários públicos e alivia reformados e pensionistas. Aumenta o salário mínimo nacional. Dá um pouco mais para a investigação em Ciência e Tecnologia e para o Ensino Superior, após os grandes cortes anteriores. Em contrapartida taxa mais a banca e os Fundos Imobiliários, que estavam muito aliviados de impostos. E taxa um pouco as transacções financeiras, as tais que custam tanto quanto carregar num botão. Aumenta as taxas sobre os automóveis e os combustíveis (que beneficiam da descida do preço do petróleo) que são taxas ecológicas e sobre o álcool e o tabaco que são impostos a favor da saúde. É pena não terem logo metido a taxação sobre as bebidas açucaradas, medida que já foi tomada em vários países, com reflexos sobre o seu consumo e sobre a prevenção da obesidade infanto-juvenil. Neste caso, como no do tabaco e no código da estrada, não se vai lá com “educação”. Vai-se com legislação. Este Orçamento de facto aumentou alguns impostos, mas tirou de um lado para pôr no outro, ou seja do lado do trabalho e dos mais desprotegidos. Tentou fazer o circuito de redistribuição ao contrário do Governo anterior. Por isso sofre a perseguição de Bruxelas e Schäuble e Dombrovskis têm a lata de falar publica e autoritariamente contra o orçamento português, eles também “como donos disto tudo”. E quanto a alguma comunicação social portuguesa, particularmente alguns canais de televisão, age como inimiga declarada do governo, como delegada da ordem das coisas dominante. Faz parte também desta perseguição que os “mercados” tenham subido os juros, só para assustar.

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