(…)
Ela
não quer justiça, mesmo que use a palavra, o que quer é dinheiro para os seus.
(…)
Há
nesta candura uma arrogância social que é todo um programa, mas que é raro
encontrar em políticos que vivem emaranhados em subtilezas de meninice de coro.
(…)
Os
antepassados políticos de Truss, em contraste com estas modernas vacilações
retóricas, não hesitavam.
(…)
Há
toda uma genealogia de empresários que dispuseram dos seus países a bel-prazer.
(…)
A
solução liberal para as crises é ainda esta, liquidar partes da economia. Nada
se cria nem perde, tudo se transforma.
(…)
Os
liberais de antigamente eram assim, desabridos, snobes e violentos, pelo que o
seu ressurgimento tem vindo a clarificar a política.
(…)
Há uma
diferença, vai ter que convir, com os liberais de hoje, que têm vergonha do seu
programa e até já aplaudem a possibilidade de saída do mercado liberalizado de
gás.
(…)
Ou que
se acotovelam para pedir subsídios ao Estado, temendo anunciar a “liquidação”
de empresas e de trabalho.
(…)
Ora,
as medidas que o Governo português anuncia, se bem que temperadas por
donativos, como noutros países e por mais pequeninos que sejam, comungam desta
filosofia liberal.
(…)
Toda a
filosofia se baseia no pressuposto de que não se pode aumentar os salários (ou
as pensões) de modo a compensar a inflação, dado que isso “alimentaria a
espiral inflacionista”.
(…)
O
argumento é que para minorar a subida dos preços, que realmente existe, se deve
impor uma redução do valor real dos rendimentos salariais, aproveitando assim
para impor um imposto camuflado.
(…)
O
contador vai a zeros em 1 de janeiro, prometendo-se que no próximo ano só se
perderá o diferencial de inflação de 2022 para 2023.
(…)
Reduzir
o aumento estrutural do valor das pensões para impor poupança futura através do
malabarismo da antecipação do pagamento de meio mês de pensão neste outubro e
mudando a lei das pensões.
(…)
Chamar
a isto “as famílias primeiro” é uma homenagem do vício à virtude.
(…)
[Os
funcionários públicos] receberão alguns 2% no próximo ano, depois de perderem
cerca de 5% este ano, ficando então submetidos, como toda a gente, às vagas dos
preços que se levantarem.
(…)
Assim,
se se perguntar ao primeiro-ministro se esta queda dos rendimentos, ou
“liquidação”, é a boa política, ele poderá responder como Truss: “Sim, é justa.”
Francisco Louçã, “Expresso” (sem link)
Se uma das grandes preocupações do
Governo é não prejudicar o défice e a dívida deste e do próximo ano, combinando
medidas que respondam à urgência mas não alimentem a espiral de inflação, é
difícil entender como não tributa os lucros excessivos de algumas empresas que
continuam a lucrar com a crise.
(…)
A posição portuguesa de ambiguidade sobre
algo que é elementar [tributação dos lucros excessivos de algumas empresas]
arrecadaria receitas públicas levanta sérias dúvidas sobre se o pacote
"Famílias, primeiro" é um mero calmante social para conter a
contestação.
(…)
Já o "falso aumento" de pensões
que poderá acabar por comprometer o valor a receber pelos pensionistas para
sempre é uma demonstração de falta de clareza inaceitável.
(…)
Uma habilidade impensável e sub-reptícia
do Governo.
(…)
Para aqueles que já perderam cerca de um
salário à custa da inflação, [o debate sobre o valor de 125 euros]
dispensa adjectivos maiores [ara além de escusado].
O “bom
pai de família” é uma figura abstrata, um tipo ideal de cidadão cujos atos se
adequam a uma norma extremamente subjetiva, tal como “o bom pobre de família”.
(…)
O bom pobre de família também tem de ser razoável, tem de
administrar com precaução os bens de que dispõem.
(…)
Como
ser um bom pobre de família com tal quantia [ o
muito comentado cheque de 125
euros? Questão espinhosa.
(…)
[Para
Isabel Jonet, um bom pobre de família] deve ser uma pessoa responsável,
evidentemente sem dinheiro, mas que poupa naquilo que não tem e sobretudo não o
gasta de uma só vez.
(…)
E
para isso precisa de ser formada ao que Isabel Jonet chama de racionalidade
económica ou, em linguagem de pobre de família, de magia económica.
(…)
O
exemplo da presidente do Banco Alimentar é perfeito para se poder compreender a
diferença entre a teoria e a prática, entre o imaginário e a realidade.
(…)
O
pobre de família é sempre um suspeito, um culpado, vai sempre gastar o dinheiro
mal gasto, mais vale dar-lhe um cabaz de compras, assim assegura-se que não vai
esbanjar em telemóveis e em televisões 4K.
(…)
O pobre de família precisa de ser contido, controlado,
fiscalizado, supervisionado.
(…)
O pobre de família é uma criança, muito diferente do rico que
é responsável e adulto desde que nasceu.
(…)
O
pobre de família precisa de muitos documentos e de contar mil vezes a sua
história à assistência social do momento.
(…)
Talvez
estas pessoas também precisem de pedagogia para compreenderem que a sua fome
não é igual à dos outros se não animarem a malta.
(…)
O bom pobre de família não pode ter prazeres, precisa de
sofrer senão não entrará no céu.
(…)
Já
recebi cabazes alimentares, mas também já dei no âmbito de um dos meus
trabalhos. A perceção da caridade não é a mesma quando se dá e quando se
recebe.
(…)
A extrema vergonha de quem recebe, de pessoas que quase não
ousam olhar-nos nos olhos.
(…)
A
consciência aguda de que a pobreza é um problema estrutural e que aquele
momento num dos países mais ricos do mundo não deveria existir.
Luísa Semedo, “Público” (sem link)
Tudo somado, o pacote do governo aposta na contração
estrutural de salários, pensões e outras prestações sociais, agravando as
dificuldades da maioria e aumentando a desigualdade entre capital e trabalho.
José Soeiro, “Expresso” online
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