segunda-feira, 18 de abril de 2016

A NATUREZA DO CAPITALISMO CONTINUA INTACTA


O artigo de opinião que Isabel do Carmo (…) assina hoje no Público é uma interessante abordagem da natureza do sistema capitalista, que em nada de essencial mudou ao longo da sua história, assim como da sua actual fase de acumulação primitiva de capital.
Uma das curiosidades deste artigo que reproduzimos a seguir é a utilização de um vocabulário próprio para a abordagem do tema. Em poucas palavras está lá tudo e muito bem.
Com as notícias que apesar de tudo nos vão chegando, com os escândalos financeiros uns atrás dos outros, com a fuga dos papéis do Panamá, com o alçapão dos bancos, há uma palavra que fica oculta. Há um elefante na sala, uma presença demasiado grande e malcheirosa, mas que não é referida pelo seu verdadeiro nome. O indizível, o inominável, tem um nome – chama-se capitalismo.
Claro que é démodé pronunciar a palavra capitalismo. Não é fino. Cheira aos sessentões nostálgicos. Em qualquer reunião pública ou privada evita-se pronunciar tal nome, como se evitam os palavrões.
No entanto é de capitalismo que se trata. Em todo o seu esplendor. E apesar de todos os condicionalismos da comunicação, assistimos ao vivo e em directo à sua história e às suas características.
O que se passa em Angola, na Rússia e na China é o retrato perfeito da acumulação primitiva de capital, como sempre aconteceu. O capital não floresce semeando umas moedas no chão. Também não floresce como resultado do trabalho. O rendimento do trabalho, mesmo que bem remunerado, pode ser amealhado, pode dar para alguma propriedade privada, mas não dá para uma quantidade de capital, que em poucos anos seja uma massa de investimento significativa. Portanto, de algum sítio ele vem.
Nos primórdios da acumulação primitiva de capital aconteceu o que acontece agora nos três países citados. Temos entre nós historiadores que o descrevem em relação ao nosso país nesse passado de início do capitalismo. É o que fez António José Saraiva e o que faz António Borges Coelho. É o que descreve Piketty. Aqueles que acumularam capital no início do capitalismo eram todos bons rapazes… Como estes actuais. Mas são deles que ficaram os nomes e a notabilidade da história oficial. Os nomes dos que trabalharam não ficam na história. E alguns não constam mesmo dos registos das paróquias. É como se não tivessem existido. Tal como na história do nosso país e dos outros, o dinheiro não floresceu em nenhuma árvore de Angola, mas catorze anos depois de acabar a guerra, os donos do poder já são “donos disto tudo”. Curiosamente a única pessoa, que eu tenha lido, e que chama as coisas pelos nomes é Luaty Beirão, que no manuscrito enviado da prisão fala exactamente de “acumulação primitiva de capital”. É uma grande esperança que haja quem compreenda o fenómeno. Na Rússia pós-golpe de Yeltsin, que substituiu Gorbatchov em 1991 e acabou com o projecto do socialismo em liberdade, o dinheiro também não cresceu em árvores. Em vinte e cinco anos tem-se acumulado a uma velocidade extraordinária, muito dele nas mãos de antigo membros do aparelho, que conheciam bem a estrutura e tinham acesso aos ficheiros da polícia. Agora uma parte desse capital acumulado dorme no off-shore do Panamá e com certeza em muitos outros, que esperemos sejam alvo de jornalistas militantes. Quanto à China, os poderosos reúnem o melhor de dois mundos – acumulação selvagem e meios draconianos de sujeição do trabalho.
Ao longo da história do capitalismo ele fez-se sempre com pirataria, servidão, escravatura colonial, exploração intensa do trabalho, agiotagem, penhoras. Fez-se como se faz agora. As histórias do capitalismo “honesto”, que nos contrapõem a este espectáculo actual, são histórias de romance.
Perante esta realidade, o New Deal de Roosevelt e o Estado Social posterior à II Guerra Mundial na Europa, foram projectos para minorar as desigualdades de nascimento e de vida, levando a que os que têm maiores rendimentos paguem impostos para um orçamento de Estado que permita acesso gratuito à saúde e à educação e que a Segurança Social funcione. Todavia, desde Reagan e Thatcher muito os liberais têm chorado este “sacrifício”, teorizam a retirada do Estado e estimulam o “empreendedorismo”, isto é que “cada um se desenrasque”. Como exemplo, eles desenrascam-se e empreendem, roubam o dinheiro dos seus próprios bancos, jogam-no na roleta financeira e colocam-no em sossego, algures, onde o podem movimentar quando e como quiserem. Na Europa não é necessário ir colocar o dinheiro no Panamá ou nas ilhas Virgens Britânicas, para onde também vai dinheiro europeu. Podem recorrer à Holanda, à Irlanda, ao Luxemburgo, à Suíça, aqui tão perto e tão civilizados, tal como fazem algumas empresas portuguesas. O FMI, o Banco Mundial, a OCDE, a “Europa” deles, os avisos e conselhos do Senhor Mario Draghi no Conselho de Estado português (onde teve a lata de vir sugerir uma revisão da Constituição, tratando-nos como uma colónia), as “reformas” necessárias são os instrumentos para manter esta ordem. A dos sacrificados e a dos sacrificadores. Porque se não for assim, dizem eles, o mundo não funciona. Ou seja baseiam o bom funcionamento no que há de mau na natureza humana. O pior é que tudo isto é legal, como disse, e bem, Obama. Pois é, e não é com remendos, bons conselhos e moralizações que o endireitam. Está na sua natureza. Parece que estes são sinais de fim de sistema, gerados pelo seu próprio avanço tecnológico. Não sei, mas gostava de saber, como é que ele vai acabar. Todavia pelo meio vai haver muito sofrimento. Esperemos que se multipliquem os consórcios de jornalistas militantes e as alternativas ao sistema.
(*) Médica, Professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, activista política

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