O
artigo de opinião que Isabel do Carmo (…) assina hoje no Público é uma
interessante abordagem da natureza do sistema capitalista, que em nada de
essencial mudou ao longo da sua história, assim como da sua actual fase de acumulação
primitiva de capital.
Uma
das curiosidades deste artigo que reproduzimos a seguir é a utilização de um
vocabulário próprio para a abordagem do tema. Em poucas palavras está lá tudo e
muito bem.
Com
as notícias que apesar de tudo nos vão chegando, com os escândalos financeiros
uns atrás dos outros, com a fuga dos papéis do Panamá, com o alçapão dos
bancos, há uma palavra que fica oculta. Há um elefante na sala, uma presença
demasiado grande e malcheirosa, mas que não é referida pelo seu verdadeiro
nome. O indizível, o inominável, tem um nome – chama-se capitalismo.
Claro
que é démodé pronunciar a palavra
capitalismo. Não é fino. Cheira aos sessentões nostálgicos. Em qualquer reunião
pública ou privada evita-se pronunciar tal nome, como se evitam os palavrões.
No
entanto é de capitalismo que se trata. Em todo o seu esplendor. E apesar de
todos os condicionalismos da comunicação, assistimos ao vivo e em directo à sua
história e às suas características.
O
que se passa em Angola, na Rússia e na China é o retrato perfeito da acumulação
primitiva de capital, como sempre aconteceu. O capital não floresce semeando
umas moedas no chão. Também não floresce como resultado do trabalho. O
rendimento do trabalho, mesmo que bem remunerado, pode ser amealhado, pode dar
para alguma propriedade privada, mas não dá para uma quantidade de capital, que
em poucos anos seja uma massa de investimento significativa. Portanto, de algum
sítio ele vem.
Nos
primórdios da acumulação primitiva de capital aconteceu o que acontece agora
nos três países citados. Temos entre nós historiadores que o descrevem em
relação ao nosso país nesse passado de início do capitalismo. É o que fez
António José Saraiva e o que faz António Borges Coelho. É o que descreve
Piketty. Aqueles que acumularam capital no início do capitalismo eram todos
bons rapazes… Como estes actuais. Mas são deles que ficaram os nomes e a
notabilidade da história oficial. Os nomes dos que trabalharam não ficam na
história. E alguns não constam mesmo dos registos das paróquias. É como se não
tivessem existido. Tal como na história do nosso país e dos outros, o dinheiro
não floresceu em nenhuma árvore de Angola, mas catorze anos depois de acabar a
guerra, os donos do poder já são “donos disto tudo”. Curiosamente a única
pessoa, que eu tenha lido, e que chama as coisas pelos nomes é Luaty Beirão,
que no manuscrito enviado da prisão fala exactamente de “acumulação primitiva
de capital”. É uma grande esperança que haja quem compreenda o fenómeno. Na
Rússia pós-golpe de Yeltsin, que substituiu Gorbatchov em 1991 e acabou com o
projecto do socialismo em liberdade, o dinheiro também não cresceu em árvores.
Em vinte e cinco anos tem-se acumulado a uma velocidade extraordinária, muito
dele nas mãos de antigo membros do aparelho, que conheciam bem a estrutura e
tinham acesso aos ficheiros da polícia. Agora uma parte desse capital acumulado
dorme no off-shore do Panamá e com certeza em muitos outros, que esperemos
sejam alvo de jornalistas militantes. Quanto à China, os poderosos reúnem o
melhor de dois mundos – acumulação selvagem e meios draconianos de sujeição do
trabalho.
Ao
longo da história do capitalismo ele fez-se sempre com pirataria, servidão,
escravatura colonial, exploração intensa do trabalho, agiotagem, penhoras.
Fez-se como se faz agora. As histórias do capitalismo “honesto”, que nos
contrapõem a este espectáculo actual, são histórias de romance.
Perante
esta realidade, o New Deal de Roosevelt e o Estado Social posterior à II Guerra
Mundial na Europa, foram projectos para minorar as desigualdades de nascimento
e de vida, levando a que os que têm maiores rendimentos paguem impostos para um
orçamento de Estado que permita acesso gratuito à saúde e à educação e que a
Segurança Social funcione. Todavia, desde Reagan e Thatcher muito os liberais
têm chorado este “sacrifício”, teorizam a retirada do Estado e estimulam o “empreendedorismo”,
isto é que “cada um se desenrasque”. Como exemplo, eles desenrascam-se e
empreendem, roubam o dinheiro dos seus próprios bancos, jogam-no na roleta
financeira e colocam-no em sossego, algures, onde o podem movimentar quando e
como quiserem. Na Europa não é necessário ir colocar o dinheiro no Panamá ou
nas ilhas Virgens Britânicas, para onde também vai dinheiro europeu. Podem
recorrer à Holanda, à Irlanda, ao Luxemburgo, à Suíça, aqui tão perto e tão
civilizados, tal como fazem algumas empresas portuguesas. O FMI, o Banco
Mundial, a OCDE, a “Europa” deles, os avisos e conselhos do Senhor Mario Draghi
no Conselho de Estado português (onde teve a lata de vir sugerir uma revisão da
Constituição, tratando-nos como uma colónia), as “reformas” necessárias são os
instrumentos para manter esta ordem. A dos sacrificados e a dos sacrificadores.
Porque se não for assim, dizem eles, o mundo não funciona. Ou seja baseiam o
bom funcionamento no que há de mau na natureza humana. O pior é que tudo isto é
legal, como disse, e bem, Obama. Pois é, e não é com remendos, bons conselhos e
moralizações que o endireitam. Está na sua natureza. Parece que estes são
sinais de fim de sistema, gerados pelo seu próprio avanço tecnológico. Não sei,
mas gostava de saber, como é que ele vai acabar. Todavia pelo meio vai haver
muito sofrimento. Esperemos que se multipliquem os consórcios de jornalistas
militantes e as alternativas ao sistema.
(*) Médica, Professora da Faculdade de Medicina
da Universidade de Lisboa, activista política
Sem comentários:
Enviar um comentário