A
discussão das políticas proibicionistas no que diz respeito ao consumo de
drogas tem estado afastada da opinião pública mas é um tema que não deve cair
no esquecimento por um elevado número de razões tais como saúde pública,
segurança, direitos humanos, justiça e outros que os estudiosos desta
problemática chamam frequentemente a atenção.
Ainda
agora acabámos de tomar conhecimento, através do escândalo internacional
conhecido pela designação “Papéis do Panamá” onde uma parte significativa do
dinheiro sujo que circula pelo mundo é proveniente do tráfico de drogas. Ora,
isto faz-nos pensar que quem defende o proibicionismo, consciente ou
inconscientemente, está a beneficiar o crime organizado, a corrupção e os
negócios ilícitos. Então, por que razão, não se experimenta enveredar por
outras políticas que não tenham por base a criminalização pura e simples do
consumo de drogas?
O
texto seguinte que transcrevemos do Público de hoje é da autoria de duas
pessoas (*) ligadas às problemáticas do consumo de drogas e nele se prova com
clarividência que a política proibicionista não leva a lado nenhum…
A ideia de que “um mundo
livre de drogas” é possível e desejável e que temos toda a “maquinaria” para o
fazer acontecer parece um sonho, mas não é. É o mais alto desígnio da política
de drogas internacional e que tem sido dominante nos últimos 50 anos em quase
todas as partes do mundo. Neste mês de Abril estarão em discussão os objetivos
e resultados desta política na Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações
Unidas (UNGASS) dedicada ao problema das drogas.
A última UNGASS dedicada às
drogas em 1998 proclamou que um “mundo livre de drogas” seria possível de
atingir até 2008. Avaliando os resultados, constatou-se que o compromisso de
1998 é não só um enorme falhanço nos seus próprios termos – as substâncias
proibidas a nível internacional nunca foram tão baratas e acessíveis como hoje
–, mas também um autêntico desastre em termos de saúde pública, direitos
humanos, segurança, justiça, igualdade e desenvolvimento social, económico e
ambiental.
O proibicionismo está
encerrado num paradoxo. É em nome da saúde pública e segurança que se defende
vigorosamente e leva a cabo uma “guerra contra as drogas” que tem ela própria
enormes consequências para a saúde, segurança e direitos dos cidadãos. As
políticas proibicionistas materializam-se num contínuo de discursos e práticas
que vão desde a estigmatização e penalização do consumo, tratamento
compulsório, penas desproporcionadas, encarceramento excessivo até ao extremo
que é a aplicação da pena de morte para delitos relacionados com drogas, que
vigora ainda em 32 países. E como sugere a inúmera evidência científica
publicada nos últimos anos, esta é uma “guerra” que contribui diretamente e indiretamente
para o aumento da violência e criminalidade associadas ao narcotráfico, para a
mortalidade precoce e claramente evitável, para a exacerbação da transmissão da
infeção pelo VIH, de hepatites virais e da tuberculose, para o acentuar do
estigma, discriminação e desigualdades, representando no fundo uma grave
limitação, ou por vezes mesmo eliminação, do direito à saúde.
Uma das mais clamorosas
consequências e também um claro exemplo de quão nocivas para a saúde podem ser
estas políticas é a persistência das epidemias do VIH e da hepatite C em
pessoas que injetam drogas, quando sabemos que as novas infeções poderiam ser
substancialmente reduzidas e tendencialmente eliminadas se fossem implementadas
as medidas de saúde pública preconizadas pelas próprias agências das Nações
Unidas e que incluem os programas de troca de seringas e de substituição
opiácea. No entanto, é muitas vezes uma visão diabolizadora do uso de drogas
que prevalece e que acaba por impedir ou dificultar a opção por políticas
baseadas em princípios de saúde pública, direitos humanos e conhecimento
científico.
São, assim, cada vez mais os
que defendem e ensaiam mudanças. Desde logo, os países (México, Guatemala e
Colômbia) que solicitaram formalmente à comunidade internacional a antecipação
da UNGASS, apenas prevista para 2019. Particularmente afetados pela violência e
criminalidade e também críticos do status quo atual, apelam a que desta vez
sejam postas em cima da mesa todas as possibilidades, incluindo a legalização e
regulação dos mercados de drogas. São também ex-líderes políticos como Kofi
Annan, Fernando Henrique Cardoso ou Jorge Sampaio que têm defendido a
regulamentação e o primado da saúde nas políticas de drogas. São ainda os
países que têm feito experiências de regulação da canábis, como o Uruguai ou
alguns estados dos EUA, ou os que têm um quadro de descriminalização da posse e
uso de todas as drogas, como é o caso de Portugal.
O consenso internacional para
a mudança, no entanto, afigura-se longínquo quando “novos guerreiros” contra as
drogas ocupam velhas posições. Países como a China, Indonésia, Irão ou Arábia
Saudita clamam não só por um reforço da repressão a nível internacional, como
também, internamente, batem recordes no número de pessoas condenadas à morte
por delitos relacionados com drogas. Há ainda que considerar a existência de
inúmeros interesses, tanto legítimos como obscuros, que giram à volta da
proibição e que resistem a qualquer alteração nas políticas. A produção e
comércio internacional de drogas é, a par com o tráfico de armas, um dos
maiores negócios mundiais.
Não é, por isso, expectável
qualquer grande mudança que deixe antever uma reforma profunda do sistema
internacional, mas há uma coisa que é inegável e que se alterou em relação a
1998 – não é mais possível manter o aparente consenso sobre a opção
proibicionista e repressiva nem sobre as consequências que tal política
acarreta. Países como Portugal podem, neste contexto, estar em condições de ter
um papel ativo e até de liderar as posições daqueles que desejam mudanças. A
experiência portuguesa de descriminalização, iniciada há 15 anos, é muito
valorizada internacionalmente e tem sido capaz de reunir algum consenso porque
ocupando uma posição intermédia – consumir não é crime, mas continua a ser
penalizado – é também um exemplo de como o alargamento dos programas de
tratamento e de redução de riscos pode alcançar melhorias em termos de saúde
pública. Pensamos, no entanto, que seria possível e também muito desejável que
Portugal fosse mais longe na ruptura com o modelo proibicionista e que, por
exemplo, pudesse também abrir a discussão sobre a despenalização das drogas e
regulação dos mercados, e ainda implementar respostas comprovadamente eficazes
como as salas de consumo assistido.
(*) Adriana
Curado e Ricardo Fuertes, técnicos do IN-Mouraria
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