terça-feira, 5 de abril de 2016

INIQUIDADE INTOLERÁVEL



O título do artigo de opinião que José Vitor Malheiros assina hoje no Público “Os impostos são só para os trabalhadores e para os pobres”, que transcrevemos a seguir, expressa a mesma ideia que escolhemos para a “frase do dia” (acima) da autoria de Mariana Mortágua no JN de hoje.
Os já denominados Papéis do Panamá que vão fazer correr muita tinta e consumir muito tempo de antena por esse mundo fora constituem mais um exemplo do escândalo que é a acção característica dos paraísos fiscais. Não há aqui surpresa alguma, mas apenas o levantar do pano de uma actividade criminosa permitida pela lei, em benefício de uma minoria de muito ricos e poderosos e contra os interesses da esmagadora maioria da população mundial.
Há muito que se conhece esta realidade e quando vem à tona mais um escândalo, como acontece agora, logo surgem as vozes habituais de muitos governantes do mundo – alguns deles directamente beneficiados com o esquema – a dizer hipocritamente que tudo vai ser rapidamente alterado para que se reponha justiça mas, passado algum tempo, quando as notícias deixam de aparecer nos telejornais, tudo fica adiado para nunca mais. Não tenhamos grandes dúvidas de que é também o que vai acontecer agora.
De qualquer modo, recomenda-se vivamente a leitura do texto seguinte (ao qual retirámos vários links) que nos dá em poucas palavras uma ideia aproximada da fraude em que vivemos com a existência dos paraísos fiscais.
O escândalo revelado pelos Panama Papers não constitui uma surpresa. Há décadas que sabemos que as coisas se passam assim.
Sabemos que existem paraísos fiscais que proporcionam este tipo de serviços – muitos deles no seio da própria União Europeia, apesar do hipócrita discurso moralista dos seus dirigentes. Sabemos que esses paraísos fiscais servem apenas para criar e albergar empresas fictícias onde pode ser parqueado dinheiro de origem clandestina ou criminosa. Sabemos que essas empresas são criadas e geridas por advogados e consultores fiscais que trabalham em gabinetes que gozam dos favores dos poderes. Sabemos que as pessoas que recorrem a estes paraísos fiscais desejam esconder dinheiro oriundo de negócios sujos, ter acesso a dinheiro cuja origem não possa ser localizada para financiar actividades ilegais e, acima de tudo, não pagar impostos em país algum. Sabemos que entre as pessoas que usam estes paraísos fiscais que financiam o crime e que defraudam os estados se encontram figuras poderosas dos negócios e da política que costumamos ver nos telejornais a debitar discursos sobre moral e justiça, a defender o primado da lei ou a apresentar-se como exemplos de empreendedorismo. Sabemos que muitos destes paraísos fiscais são entidades legais, que albergam empresas cuja criação é legal e cuja actividade é legal – mas isso apenas é assim porque os legisladores nacionais e internacionais ou se abstêm de legislar sobre estes espaços invocando a inutilidade de legislação que não seja aplicada ao nível planetário ou porque têm o cuidado de deixar na lei os alçapões necessários para proteger os prevaricadores que serão um dia seus clientes ou patrões. Sabemos que este mesmo dinheiro que se encontra nos paraísos fiscais é dinheiro que foi roubado à economia, ao erário público, aos contribuintes e que, se houvesse um combate decidido contra esta evasão fiscal, muitos dos problemas sociais que afectam o mundo poderiam ser resolvidos e muitos dos conflitos poderiam ser evitados. Sabemos que a actividade desses paraísos fiscais não se faz sem a cumplicidade dos bancos, já que é a partir deles, através deles e para eles que o dinheiro acaba sempre por fluir. Sabemos que os paraísos fiscais, mesmo quando não são ilegais, são imorais e ilegítimos e promovem a desigualdade, a pobreza, o crime organizado, a corrupção, as ditaduras e as guerras, sendo como são espaços impenetráveis ao escrutínio dos cidadãos.
Sabemos tudo isso. Sempre soubemos tudo isso. Há milhares de indícios que apontam nestas direcções e que sabemos que são minúsculas pontas de um gigantesco iceberg.
A diferença é que agora – graças a uma fuga de informação de um denunciante não identificado, ao trabalho do diário alemão Süddeutsche Zeitung, do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) e de 378 jornalistas de 107 meios de comunicação de 77 países – temos uma extensa lista de nomes de pessoas e de empresas e milhões de documentos que podem ajudar a provar a ilicitude de algumas dessas transacções e a denunciar (e a condenar?) alguns dos seus autores.
A massa de informações contida nesta fuga dá-nos uma noção da dimensão mundial da fraude em que vivemos e do número de “personalidades” (na política, nos negócios, no desporto, no crime organizado) que não só fogem impunemente aos impostos como conseguem esconder a sua riqueza para esconder os seus crimes. É conveniente ter em conta que esta fuga, com os seus terabytes de dados, diz respeito apenas a UMA empresa de advogados com sede no Panamá, a Mossack Fonseca, e que muitas outras do mesmo tipo existem no mundo.
O facto que esta fuga de informação põe em evidência é algo que a esmagadora maioria dos cidadãos continua a não querer ver: o facto de as leis serem aplicadas à massa de cidadãos trabalhadores, os cidadãos com menos rendimentos ou mesmo declaradamente pobres, que são obrigados a pagar os seus impostos, mas poupando ilegitimamente os mais poderosos, uma minoria de pessoas que detém quase toda a riqueza do mundo e que consegue viver à custa do sacrifício de todos os outros, comprando Lamborghinis com o dinheiro que não pagaram em impostos e que deveria ter sido usado para aliviar a pobreza, a fome e a doença. O sistema impõe regras aos mais pobres e permite todas as batotas aos mais ricos.
Esta é uma iniquidade moralmente intolerável e socialmente destruidora. Mas tem sido tolerada por legisladores, governantes e até pelos cidadãos eleitores, que aceitam com bonomia que um homem como Jean-Claude Juncker, cujo governo ajudou a transformar o Luxemburgo numa estância de evasão fiscal (como a LuxLeaks, uma outra fuga de informações, mostrou), seja, para nossa vergonha, presidente da Comissão Europeia.
Esperemos os próximos capítulos deste escândalo e esperemos os nomes dos políticos ocidentais e portugueses, que não deixarão certamente de vir à superfície. Depois, iremos deixar os paraísos fiscais na mesma, como temos feito até aqui?

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