terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

É O PETRÓLEO E NADA MAIS QUE O PETRÓLEO



São mais que muitos os exemplos de países, com fracas estruturas de poder e muitas vezes governados por cliques de corruptos, onde a descoberta de riquezas naturais só trouxe desgraças, destruição e morte para as populações indefesas e enganadas. A certa altura aparecem uns abutres, cinicamente preocupados com o respeito pelos direitos humanos e a democracia que se armam em defensores da liberdade dos povos quando, antes, quase nem conheciam a sua existência.
Só ingénuos acreditam que o que se passa atuamente na Venezuela não tem nada a ver com o facto de este país ser o detentor das maiores reservas de petróleo conhecidas no planeta. Não fosse este o caso, e bem poderia um qualquer déspota ser presidente por toda a vida caso abrisse as portas à exploração do ouro negro por parte das grandes multinacionais petrolíferas do grande vizinho do norte.
Está já montado um típico cenário que prepare a intervenção do país de Trump na Venezuela, de modo a colocar no poder, a qualquer preço, mais um serventuário dos interesses norte-americanos na América latina.
É à volta desta situação que gira o excelente artigo de opinião que Francisco Louçã assina hoje no Expresso Diário.

Há várias formas de capturar um território com reservas de petróleo e nenhuma é fácil. A mais confortável é ter lá um governo que proteja os interesses da potência hegemónica, até deve ter capacidade militar e, de preferência, ser uma ditadura. É mais seguro. Se for uma ditadura teocrática, excelente, tudo se justifica. Assim género Arábia Saudita.
A segunda forma é uma guerra de ocupação. É um quebra-cabeças. Chega-se lá com um truque do tipo do incidente do Golfo de Tonkin, eles é que nos atacaram (1964, e foi a invasão norte-americana do Vietname), ou com o anúncio da descoberta das armas de destruição maciça de Saddam, ele é perigoso (2003, e foi a invasão norte-americana do Iraque). Mas tem sempre custos, botas militares no terreno podem voltar para casa em caixões. E depois os argumentos para a invasão são sempre um risco, como as tais armas no Iraque, uma certeza reafirmada na ONU por um general prestigiado, Colin Powell. Finalmente, mesmo que a opinião pública fique perplexa, há protesto e pode ser gigantesco, não por causa de Saddam Hussein, que ninguém tolerava, mas porque Washington já usou o truque vezes demais e não carecia de muito para perceber que mais uma guerra no Médio Oriente ameaçaria toda a região e a Europa. O resultado é, tudo somado, incerto. No Iraque, o saldo foi a extensão do poder de influência do Irão e mais terrorismo. Pagamos o preço ainda hoje.
Como a primeira estratégia não está disponível na Venezuela e a segunda é por ora demasiado arriscada, uma terceira está a ser ensaiada. Leva mais tempo, não é força concentrada, depende da evolução dos movimentos populares, é a estratégia do cerco e da convulsão interna. Ela depende de conseguir criar uma massa de revolta social. Mas há qualquer coisa de estranho que se está a passar: mal governada por um regime assente no petróleo, e o petróleo é sempre corrupção, que foi incapaz de diversificar a produção e de criar alguma soberania alimentar, cercada por sanções que impedem ou limitam as suas exportações, explorada pelos seus aliados chineses e russos, com os supermercados vazios, na Venezuela a opinião pública está dividida mas não se alinha facilmente com Trump. Onde se esperava uma cavalgada triunfante até à porta do palácio, vemos manifestações gigantes dos dois lados. E é por isso que este foi o momento escolhido para o reconhecimento internacional de Guaidó, ele precisa desse impulso externo para tentar dividir as forças armadas, depois de só ter conseguido a apresentação pífia de um coronel em Washington e de um general revoltado algures no país.
Há uma consequência desta terceira estratégia. É que ela exige política suja em bombardeamento maciço. Como se trata de jogar na divisão interna e de neutralizar a opinião pública internacional, é necessária uma devastadora campanha ideológica. Choque e pavor, mas não com bombas, será com notícias e opiniões. Tem de haver gritaria, choro, insultos, redes sociais em polvorosa. Ora, a estratégia vacilou no fim de semana, pois as televisões fizeram o seu trabalho e mostraram as duas manifestações. É inconveniente, esperava-se que só mostrassem a de Guaidó. Já tinha havido o caso da notícia da invasão da casa do pretendente. E depois o pateta veio contar como foi, uma carrinha branca com gente que se identificou como serviços secretos e que fizeram perguntas ao segurança que estava na guarita. Não pode ser assim, isto precisa de gente morta, imagens de desastre e violência.
Entretanto, como o caso se prolonga no tempo, vão surgindo alguns deslizes de nervosismo, como Bolton a sugerir que pode prender Maduro em Guantánamo (portanto, digam-me se estou a raciocinar bem: isso alegaria que o Presidente venezuelano é uma ameaça de segurança para os Estados Unidos e seria preso sob uma legislação de exceção que lhe retira o direito de defesa em tribunal). Outro erro, Trump vai lembrando uma invasão militar, tem de satisfazer os seus apoiantes, mas isso incomoda os governos europeus que, em estado de negação, rezam para que os militares internos lhes resolvam o problema que pode exigir militares invasores.
No fim, tudo se resume a isto: ainda se vai descobrir que deve haver armas de destruição maciça na Venezuela. Ou um incidente sangrento que justifique tudo. De uma forma ou outra, tem mesmo de haver o início de uma guerra civil para que a estratégia funcione. E já vimos de tudo, não é certo? Os alinhamentos mais surpreendentes são sempre possíveis e, para os que acham que os blocos geoestratégicos são uma garantia de proteção, venho lembrar-lhes que, após o golpe contra Allende, a China e o Vaticano foram os primeiros Estados a reconhecer o general Pinochet, enquanto os presos chegavam ao estádio de Santiago para serem fuzilados.

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