(…)
Nem
mesmo a mais sinistra das conspirações — e já tivemos algumas insinuações sobre
essas forças maléficas — conseguiria conjugar uma novela tão sumarenta.
(…)
Isto
foi assim pela triste razão de que é assim.
(…)
Já lá
está tudo o que desmente um simples azar: temos uma nau à deriva no mar, a
ordem do comando reduzida a uma farsa, a chefia desaparecida depois de ter
feito voz grossa.
(…)
É tudo
demasiado pequeno para não parecer uma caricatura.
(…)
Nem a
vergonha contém o frenesim do autoelogio das contas governamentais, que estavam
tão certas ao longo de tanto tempo que a corveta voltou arrastada por um cabo
depois de morrer à vista da costa.
(…)
Desde
que os spin doctors assim o determinaram, a maioria passou a chamar-se
“dialogante”.
(…)
É
nisto que está o Estado, degradado por décadas de incúria, incompetência e
modorra. E se fosse só isso.
(…)
O
problema mais profundo é mesmo a escolha: as políticas públicas são destroçadas
por estratégia.
(…)
Ainda
o Mondego não se tinha tentado aventurar pelo mar adentro e já havia mais
dinheiro para reparações, dito por um governante que, prudência a quanto
obrigas, agora prefere calar-se.
(…)
Haverá
então investimento. Só nos hospitais é que não pode ser.
(…)
Na
saúde o pouco investimento será para sobreviver. É o Estado a esquecer o país.
(…)
Mas
vai haver dinheiro. Há um jorro de milhões para baixar o IVA de 44 produtos até
outubro, o que virá depois será curioso de ver.
(…)
Esclareça-se
que a cebola não é importada da Ucrânia e que os custos de produção nem subiram
um quinto daquele valor, alguém ganha a diferença.
(…)
O povo
tem que acreditar nos resultados sem conhecer a medida, mesmo tendo a certeza
de que já está a perder.
(…)
[O
Governo] não tem nenhuma razão para pensar que a funesta degradação do Estado
seja sequer um problema.
(…)
A corveta, os hospitais, os preços
especulativos, tudo isso foram azares. Nossos, é bom de ver.
[No] Dia Internacional em Memória das
Vítimas da Escravatura e do Tráfico Transatlântico de Escravos, no passado 25
de março, António Guterres (…) reconheceu que “o legado do comércio
transatlântico de escravos persegue-nos até hoje”, colocando entraves ao
desenvolvimento do continente africano “por séculos”.
(…)
Guterres defendeu que deveriam ser
introduzidos nos currículos escolares conteúdos sobre o que foi a escravatura e
as “cicatrizes” que deixou.
(…)
Esta tomada de posição, embora não
reconheça explicitamente o racismo estrutural, admite que o racismo tem origem
no colonialismo e na escravatura transatlântica.
(…)
O secretário-geral da ONU não afirma,
contudo, que parte da desconstrução e reparação do legado da escravatura
transatlântica passa, exatamente, pela recusa nos currículos escolares de uma
narrativa glorificante da história colonial portuguesa.
(…)
Nesses motes, a expansão
colonial é apresentada muitas vezes enquanto uma grande aventura, uma espécie
de expedição científica.
(…)
Uma pessoa incauta pode até pensar que a
expansão colonial foi uma imensa expedição botânica e que o tal “encantamento”
não foi, afinal de contas, estupro, escravatura, morte e arrebanhamento de
recursos.
(…)
[Oculta-se, sobretudo,
que a colonização serviu], o enriquecimento e a fortuna de uma minoria
privilegiada.
(…)
As pessoas negras escravizadas surgem
entre as “trocas comerciais” colocadas ao nível de “produtos de origem
africana”, como o marfim, malagueta, óleo de palma, algodão, ouro,
desumanizando-as, mais uma vez.
(…)
Num
enviesamento lusotropicalista, se prefira salientar como resultado desse
processo a miscigenação ou “aculturação” (…) e não as desigualdades estruturais
e o racismo que marcam as nossas vidas ainda hoje.
Cristina Roldão, “Público” (sem link)
A literatura pode ofender, perturbar,
causar indignação, fazer emergir em nós a necessidade do vitupério; ela existe
para isso, para nos abanar, provocar, para nos arrancar das âncoras das
verdades inabaláveis e nos deixar em perigo nos mares agitados da dúvida
permanente.
António
Rodrigues, “Público” (sem link)
O
lapso temporal e a falha na cronologia parece ser matéria onde todos se
entendem [no que diz respeito ao acordo alcançado na segunda-feira a fim de reduzir
e estabilizar os preços dos bens alimentares].
(…)
Na
versão de Marcelo, a esperança não é a última a morrer: antes, morre o poder de
compra que continua a perder-se.
(…)
Será
imperioso que o patamar último de confiança não seja demolido.
(…)
Os
abusos das distribuidoras e o aproveitamento face à inflação têm colocado o
nível de desconfiança em picos históricos.
(…)
A
infracção alimentar é três vezes superior à geral quando todos assistimos a
descidas e subidas, montanha-russa nos preços da energia e combustíveis. Alguém
explique.
Hoje assinalamos o Dia
Internacional da Visibilidade Trans e a esse propósito estive a ler o
respectivo manifesto.
(…)
O manifesto situa a luta “trans” no contexto
da luta de classes e não vira costas a relacioná-la com a luta dos
trabalhadores ou com a luta por melhores condições socioeconómicas.
(…)
Para quem tiver
dúvidas, assume-se a luta “trans” como sendo anticapitalista.
(…)
É de elogiar que os que defendem uma
causa se dirijam à sociedade posicionando a sua luta na grande luta coletiva e
que não deixem margem para equívocos.
(…)
Ao integrar-se na luta dos
trabalhadores, a luta “trans” está a dizer não à precariedade e a reivindicar
direitos que são essenciais às classes socioeconómicas mais baixas.
(…)
Isto não implicou que tenham abdicado
das suas reivindicações específicas e refiro, como exemplo, a realização de
cirurgias em tempo razoável no SNS e nova legislação para trabalhadores do
sexo.
(…)
Hoje é dia de darmos
visibilidade a uma luta de pessoas que afirmam sentir-se invisíveis e
desprotegidas.
(…)
Há um longo caminho
para percorrer e já se faz tarde. Nenhuma luta tem mais urgência.
(…)
[As pessoas “trans”] são
pessoas vítimas de ódio e discriminação e estão, de forma organizada, a
reivindicar direitos fundamentais.
(…)
[A mensagem de luta que
passa é que] parece ser mais eficaz ocupar à força os espaços onde pretendem
ter presença.
(…)
Nenhuma luta se ganhou
sem luta.
Carmo Afonso, “Público” (sem link)
Sem comentários:
Enviar um comentário