(…)
A alternância teve a capacidade de organizar a política,
subordinando todo o regime, dispensando até a apresentação de alternativas.
(…)
Os dois principais partidos orgânicos entenderam sempre que tinham
o direito a governar por imposição paraconstitucional e que os que neles faziam
carreira mereciam gratidão pública.
(…)
Na erosão do regime, pensam que ganharão eleições com a magia do
passado e enganam-se.
(…)
Essa forma de crise de regime não é exceção nos novos tempos. Pelo
contrário, é a norma, e convém perceber a razão.
(…)
Não haverá regime político, como os conhecemos desde o fim da
Segunda Guerra, que resista a esta transformação, que torna a bufonaria de
extrema-direita o polo aglutinador da direita.
(…)
O desaparecimento dos partidos orgânicos tornou-se, por isso, uma
das expressões das crises de regime.
(…)
A depressão do regime
(…) é sobretudo a expressão da sua incapacidade em responder à vida das
pessoas, e assim caem esses partidos.
(…)
[No caso do PS] primeiro eleitor-tipo é o fiel dos fiéis, quem
votaria sempre no partido.
(…)
O segundo eleitor-tipo é o que escolhe o PS por medo dos
adversários e, em particular, da aliança do PSD com a extrema-direita.
(…)
O terceiro tipo é o que exige uma visão para o país, que escolhe
entre alternativas programáticas e que se orgulha de ter votado em vários
partidos, consoante a sua consciência.
(…)
Nas eleições anteriores, o PS contou com o primeiro tipo de
eleitorado, fez tudo para mobilizar o segundo (…) e conseguiu o terceiro
com a garantia da estabilidade.
(…)
Dar-se-ão conta os seus candidatos atuais das perdas em qualquer
destes eleitorados?
(…)
Para o terceiro, ter sido o Governo a demitir-se e a alimentar
intrigas e questiúnculas, escolhendo o Presidente como alvo, mostra que o
partido não é confiável.
(…)
Para o segundo, o facto é que não houve qualquer barreira à
extrema-direita, que cresceu como nunca com este Governo.
(…)
O problema maior do PS, no entanto, é que parte do primeiro tipo
de eleitorado o abandonou.
(…)
Metade do eleitorado de Ventura poderá ser dos fiéis que sempre
votaram PS.
(…)
Eis uma demonstração triste de como a crise do regime foi criada
pelo desprezo social que a maioria absoluta exibiu.
(…)
Nenhum subsídio responde a pessoas fartas de esperar, que sabem
que o seu ordenado não paga nem a casa nem os dias, ou que descobrem que há
envelopes de dinheiro escondidos num gabinete do palácio.
Francisco Louçã, “Expresso” Economia (sem link)
A extrema-direita continua a granjear figuras de proa que
qualquer “reality show” não desdenharia.
(…)
A voz dos anti-sistema perdeu razoabilidade e pensamento crítico,
esvaziou-se no básico e centrou-se na atitude visceral.
(…)
A grosseria venceu e vale votos e os patos-bravos já não são
aves raras.
(…)
Os acontecimentos nos EUA e Brasil não funcionaram como
alarmes, antes como faróis.
(…)
E não foram os extremistas que se modelaram ao centro, foi o
centro que se abriu aos extremos.
(…)
O populismo tem criadores, fundadores e paternais
alquimistas. E poucos são os bons radicais que nos salvam dos extremistas.
(…)
Nenhuma erva daninha se detém perante a demagogia e o
empobrecimento da terra.
(…)
Abraçar o discurso da extrema-direita, esperando que se
moderem, eis um mantra repetido que não resiste à memória de empoderamento de
Passos Coelho a André Ventura em Loures.
Quando
se diz algo absolutamente razoável sobre a insustentabilidade de um sistema
dependente do crescimento a todo o custo, a recepção violenta ou pedante (pelas
elites, comentadores políticos, etc.) é sinal de que voltamos ao estilo da
Idade Média.
(…)
Independentemente do dogmatismo vigente, o
facto é que não podemos continuar a aumentar o PIB para sempre.
(…)
O paradoxo de
Jevons verifica-se sempre, desde que foi identificado no início da
Revolução Industrial, e é o que demonstra a impossibilidade crónica do
crescimento verde.
(…)
E esta dependência de fluxos materiais e
energéticos cada vez maiores implica uma destruição da Natureza na mesma
proporção
(…)
Continuar
a acreditar que conseguimos “inovar tecnologicamente” as soluções para as
múltiplas manifestações deste imenso problema é não perceber a natureza desse
mesmo problema.
(…)
Neste
novo [negacionismo], (ainda) não se acredita que a destruição natural sem
precedentes que estamos a viver seja provocada pela obsessão do crescimento
económico exponencial.
(…)
O
mundo como o conhecemos, e como se materializa nas nossas vidas diárias, está
prestes a sofrer uma redução imensa na sua capacidade de aceder às quantidades
de energia, materiais e estabilidades essenciais à sua continuação.
(…)
[Os
novos negacionistas] têm uma visão de progresso monolítica, subjugada ao
imperativo do crescimento económico, fora da qual tudo para eles é "um
inferno”.
(…)
Não contemplam qualquer possível transição,
qualquer via de desenvolvimento alternativo.
(…)
Não
entendem que o tal "fim do mundo" se refere ao aproximar do "fim
de um mundo", i.e. de um modo de viver: o nosso.
(…)
E estão 100%
errados, porque isto foi algo que aconteceu, literalmente, a 100%
das civilizações da história da humanidade.
(…)
E nas
100% das vezes que isto aconteceu, as suas elites não reagiram: o que as
tornava e mantinha como elites era o sistema em que viviam, mesmo quando este se
desmoronava debaixo dos pés.
(…)
Hoje,
com o velho mundo a desmoronar, surgem já várias alternativas sistémicas,
económicas, democráticas, agrícolas, regenerativas, tecnológicas e em tantas
outras vertentes.
(…)
O que
não podemos – e não podemos mesmo – é deixar tudo na mesma, "nas
mãos" de um nível de comentário político miserável, de elites políticas e
económicas focadas meramente em lucros e eleições, e tudo dependente de uma
premissa económica impossível.
Guilherme Serôdio, “Público” (sem link)
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