É
do conhecimento de quem lê jornais, que a empresa proprietária do semanário Sol
e do jornal i reduziu para um terço o seu número de trabalhadores e, como veio
a público, aqueles que quisessem continuar a ter trabalho deveriam abdicar de
uma grande quantidade de direitos laborais e regalias.
O
desrespeito pelos direitos de quem trabalha já chegou a um ponto em que os
donos de uma empresa – neste caso jornalística – se dão ao desplante de gravar
uma reunião em que vão enviar para o desemprego a maioria dos trabalhadores e
ainda colocam on-line essa gravação, como que a mostrarem a força que detêm,
passível de ultrapassar a própria lei.
É
muito interessante o comentário (*) seguinte que transcrevemos do Público de
sexta-feira dia 18 de Novembro que nos ajuda a compreender que “um
ambiente de medo, de chantagem e de aniquilação pura e simples é a regra em
muitos locais de trabalho” e como as notícias que actualmente chegam a nós através
dos jornais, rádio ou televisão são, por assim dizer, fabricadas.
Há dias, não resisti à curiosidade de ouvir a
gravação de um plenário da redacção do jornal i,
onde um administrador, em vias de se tornar director, apresentou um programa
“salvífico” que implica o sacrifício, a retirada e a renúncia voluntária de uma
parte considerável dos jornalistas. É um documento extraordinário do nosso
tempo: tem uma dose de loucura e outra de crueldade a roçar a perversão. Mas o
mais inquietante é que a gravação foi difundida on-line por
decisão do próprio administrador, o que significa que, por aqueles lados, a
loucura foi naturalizada e a perversão é exibida sem pudor. Mas o documento
lança uma suspeita: será que não teríamos muitos outros documentos como aquele
se as reuniões “terminais”, digamos assim, com os empregados, destinadas a
transmitir-lhes o destino das respectivas empresas (não apenas as de
comunicação social) fossem gravadas e tornadas públicas? Um ambiente de medo,
de chantagem e de aniquilação pura e simples é a regra em muitos locais de
trabalho. Mas em relação a um jornal tendemos a pensar que nunca se chega a um
tal nível. No entanto, algo se transformou nas últimas décadas e os jornais
tornaram-se completamente permeáveis às lógicas mais duras das relações de
trabalho. Os jornalistas são hoje uma classe proletarizada a quem não é
reconhecida a pertença ao universo profissional dos que gozam de autonomia intelectual.
Esse privilégio, associado à caução de uma assinatura pessoal, é uma coisa do
passado. A partir do momento em que as notícias, de um modo geral, deixaram de
ser a matéria-prima dos jornais, o poder oligárquico transferiu-se em grande
parte para a chamada “opinião”, que se dilatou de maneira insensata e se tornou
um derivado do entretenimento. E como a opinião pode ser fornecida por pessoas
exteriores, no limite um jornal é apenas um novo género editorial, isto é, o
produto de escolhas e decisões que não exigem a concepção de um jornal como uma
totalidade. O jornalismo torna-se assim mais um ramo da “indústria de
conteúdos”, que é uma coisa que se dispensou de pensar a sua forma. Nada disto
acontece por acaso, e sem dúvida que muita gente implicada, embora olhando
criticamente o processo, sente-se arrastada por uma poderosa força coerciva.
Como na lógica da economia política do nosso tempo, também aqui há uma voz que
se ouve por todo a lado a dizer: não há alternativa. Mas quando olhamos as
coisas mais de perto, a alternativa existe sempre. Foi por castigo divino e por
inelutável lei trágica que os trabalhadores do i ficaram
submetidos a um tal administrador? Seja-me permitido introduzir uma nota da
experiência pessoal. Durante cerca de 20 anos, o director do Sol,
José António Saraiva (cuja sorte é a prova de que não há justiça imanente), foi
director do jornal onde eu trabalhava, o Expresso.
Recordo-o como um senhor educado, que exercia o seu poder de maneira discreta e
sem impulsos de chefe tirânico. Fui sempre tratado por ele com a maior decência
e gozei da máxima liberdade. Mas lembro-me, também, que os seus textos não eram
exactamente o que de mais apreciável ele tinha para nos dar e muitos eram os
que na redacção do jornal perguntavam: mas não há alternativa? Nos últimos
anos, raramente li os seus artigos no Sol, mas todos os que li eram
cómicos a valer. Involuntariamente cómicos. Espantei-me muitas vezes que os
seus artigos não fossem um impedimento para o exercício das suas funções. A sua
sobrevivência, como a de muitos outros, é a prova de que a lei darwiniana não
se aplica às espécies intelectuais.
(*) António Guerreiro
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