terça-feira, 5 de novembro de 2019

A DESONESTIDADE/OPORTUNISMO DE VENTURA


Não é ao acaso que o PSD se encontra emerso num mar de contradições. É que este partido, sendo inequivocamente de direita, nunca concentrou em si uma ideologia bem definida. O que, de facto, une os seus aderentes é uma considerável apetência pelo poder que provoca acaloradas disputas internas quando está fora dele ou o vê como uma miragem. É o que se passa actualmente.
Com este pano de fundo não admira, pois, que, cada vez mais, seja albergue político do mais variado tipo de gente que tem como principal finalidade o acesso a cargos de poder com as correspondentes benesses que eles, como ninguém, sabem tirar partido. Nenhum valor move estas pessoas que, com a maior das facilidades muda de opinião caso os seus interesses imediatos assim o exijam.
André Ventura, o agora deputado de um partido de extrema-direita, encaixa-se perfeitamente neste quadro como se pode verificar pela comparação das ideias que defende na sua tese de doutoramento concluída em 2013 com o seu pensamento político atual. Como muito bem afirma Daniel Oliveira (DO) na sua crónica de ontem no “Expresso” Diário, “o contraste entre o discurso político e académico [de Ventura] não poderia ser mais abissal”.
Aliás, a forma certeira como DO desmonta as contradições do actual líder do “Chega” levaram-nos a deixar aqui o texto completo cuja leitura se faz com muito gozo. (Para facilitar a sua leitura, retirámos quase todos os links)

Em 2013, André Ventura entregou a sua tese de doutoramento na Universidade de Cork, na Irlanda. A tese é sobre as políticas antiterroristas depois do 11 de setembro. Em torno do clima de medo e do aproveitamento político que foi feito desse medo, com redução de garantias para os cidadãos e leis securitárias que ele visivelmente deplora. Aquilo a que o jurista chama “lei criminal do inimigo”. Tem como citação recorrente, em tom elogioso, Boaventura de Sousa Santos. Sim, estou a falar do André Ventura que todos conhecemos.
Como é de acesso restrito até 2022, o “Diário de Notícias” foi consultar a tese na Biblioteca Nacional. O contraste entre o discurso político e académico não poderia ser mais abissal. Mesmo o que num e noutro é matéria de opinião. Na sua tese, André Ventura assinala que, tendo como “fundamento moral o medo”, foram aprovadas “medidas restritivas e altamente intrusivas das liberdades dos cidadãos”. Um efeito que se sentiu em Portugal, com “enorme expansão de poderes policiais” e “degradação de direitos fundamentais” que afetaram a privacidade dos cidadãos. Ventura não fez a coisa por menos: “Em apenas dez anos, Portugal e Espanha recuaram um século em termos de privacidade dos cidadãos e da interferência do Estado”. E denunciava uma “enorme expansão dos poderes policiais em Portugal”.
É este mesmo académico, preocupado com a expansão de poderes policiais e a degradação dos direitos fundamentais dos cidadãos que, menos de cinco anos depois, fundou um partido que se assume, “para usar a terminologia dos seus adversários, sem quaisquer complexos, como um partido ‘securitário’” . Entre os “seus adversários” está, portanto, o doutor André Ventura. O mesmo homem que se preocupava com a expansão de poderes policiais diz que “vivemos num tempo em que fazemos dos bandidos heróis e dos polícias vilões”. E bem longe das suas preocupações com a “subversão do modelo constitucional”, quer “quebrar o sistema político português, acabar com a III República e iniciar uma outra”.
Não há dois Ventura. Há apenas o que escreveu a tese de 2013. Aos seus pares, académicos que respeita e por quem gosta de ser respeitado, diz o que pensa. Aos seus eleitores, que considera demasiado ignorantes para ouvirem o que ele diz entre doutores, dá-lhes frases fáceis. Nenhum valor move a sua carreira política. Antes um verdadeiro fascista. Esses podem ter as convicções erradas, mas ao menos estão lá
Mas o ideal é olhar para pormenores. Na sua tese, André Ventura assinalava com preocupação a evolução da opinião pública espanhola quanto à pena de morte e qualquer tipo de prisão perpétua, incluindo para o crime de terrorismo. Ainda em 2015, como assinala Fernanda Câncio (autora do artigo), Ventura recordava que Portugal foi dos primeiros países a abolir a prisão perpétua: “E ainda bem!”.
Dois anos depois, já era candidato a autarca, defendia-a. Exatamente para o crime de terrorismo. E até defende um referendo para reintroduzir a pena que Portugal foi dos primeiros a abolir e “ainda bem”.
Teve o mesmo tipo de “evolução” em relação ao tratamento a dar a agressores sexuais. Em 2013, criticava a criação de registos de agressores sexuais no Reino Unido, porque “não se fundamentou numa avaliação ou estudo substantivos mas em opiniões populares expressas nos media, incluindo a publicação de informação sobre agressores sexuais que levaram a manifestações de massas, denúncias e vigilantismo.” Agora defende nada mais nada menos do que a sua castração química. Inadmissível registá-los, perfeitamente admissível castrá-los.
Na tese, Ventura assinala que a legislação securitária, para além de ter criado uma “alta conflitualidade social”, teve como efeito “um aumento da suspeição em relação a determinadas comunidades”. O pânico social instalado foi responsável “pela estigmatização de certas comunidades que foram associadas, de modo superficial, ao fenómeno terrorista”, favorecendo “a discriminação entre cidadãos da mesma comunidade, baseada nas suas características étnicas e religiosas”. E apontava o dedo à descriminação praticada pela “polícia e outras forças de segurança”, baseada “em preconceitos sobre raça, nacionalidade ou religião”.
Três anos depois, o mesmíssimo André Ventura, já rumo à sua carreira política, escrevia, a propósito dos ataques terroristas de Nice, que estes ataques “obrigam-nos a um olhar diferente sobre as comunidades islâmicas na Europa”. E o mesmo homem que antes lamentava a estigmatização com base superficial perguntava: “Poderemos fazer qualquer prevenção que seja quando estas comunidades são, em alguns países, de milhões de habitantes ou, em algumas cidades, 25% da população?” Longe da sua preocupação com discriminação “baseada nas suas características étnicas e religiosas” defendia “a redução drástica da presença islâmica na União Europeia.”
Na entrevista que lhe foi feita por Fernanda Câncio, André Ventura dedicou-se a uma ginástica argumentativa que, apesar de merecer boa nota artística, chega a ser dolorosa para quem assiste. A sua grande defesa é esta: uma coisa é a ciência, outra é a opinião. Não há qualquer problema em, enquanto cientista, defender uma coisa, e como político, ter a opinião exatamente oposta. Para não se perderem, há um bom exemplo. Na tese, André Ventura recorda que “Portugal é dos países mais pacíficos do mundo”. No programa do seu partido diz que é “um país com uma insegurança crónica”. As duas afirmações contrárias explicam-se, segundo Ventura, porque uma se baseia na “análise dos relatórios” a outra na “perceção” dele e das pessoas.
O exercício que o político André Ventura faz, quando usa uma “perceção” que se afasta da realidade mensurável que conhece, é explicada pelo académico André Ventura, quando nos diz onde nasce o “clima social de aceitação – muitas vezes manipulado pelos media – face à adoção de medidas criminais e administrativas que só podem ser caracterizadas como altamente opressivas e restritivas dos direitos fundamentais dos cidadãos”. Aquilo a que ele chama “populismo penal” resulta, escreveu na sua tese, do “processo pelo qual os políticos aproveitam, e usam para sua vantagem, aquilo que creem ser a generalizada vontade de punição do público”.
O Ventura cientista é o melhor explicador do Ventura político. Talvez até tenha aprendido consigo mesmo, percebendo que aquilo que criticava era o que resultava. Agora, ao separar o conhecimento científico da opinião, diz-nos com toda a clareza que o seu discurso político recusa as evidências que ele próprio conhece. Que pode dizer que Portugal é um país inseguro (opinião) mesmo que saiba que é dos mais seguros (ciência). Esta separação entre conhecimento fundamentado e opinião baseada na perceção é uma das bases do discurso de um demagogo.
Não é por acaso que a tese de André Ventura não está disponível online, por esperar publicação há anos. Com a sua notoriedade, venderia como pãezinhos quentes. André Ventura não quer que os seus eleitores o conheçam. Não há dois Ventura. Há apenas um: o que escreveu a tese de 2013. Aquilo são as suas opiniões com base no que realmente sabe. Na carreia académica que, para vantagem política, até gosta de se vangloriar. O resto, que forjou nos últimos anos, é o que criou para os seus eleitores. “Opiniões” que contrariam o que “cientificamente” verificou. Aos seus pares, académicos que respeita e por quem gosta de ser respeitado, diz o que pensa. Aos seus eleitores, que considera demasiado ignorantes para ouvirem o que ele diz entre doutores, dá-lhes frases fáceis. Ventura, o mais elitista dos políticos.
Diz-se que quando concorreu à Câmara Municipal de Loures André Ventura mandou fazer um estudo de opinião. Foi aí que percebeu que a questão dos ciganos rendia votos e definiu a sua “opinião” sobre o tema, que contraria a a sua preocupação com a “estigmatização de certas comunidades” que ainda há muito tempo considerava “superficial”. Nenhum valor move a carreira política de André Ventura. Antes um verdadeiro fascista. Esses, ao menos, têm convicções. Podem ser as erradas, mas ao menos estão lá. Esses alimentam o ódio em nome de uma coisa que, nas suas mentes retorcidas, consideram ser uma sociedade melhor. Ventura apenas o faz em nome do seu próprio ego.

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