Não é ao acaso que o PSD se encontra emerso
num mar de contradições. É que este partido, sendo inequivocamente de direita,
nunca concentrou em si uma ideologia bem definida. O que, de facto, une os seus
aderentes é uma considerável apetência pelo poder que provoca acaloradas
disputas internas quando está fora dele ou o vê como uma miragem. É o que se
passa actualmente.
Com este pano de fundo não admira, pois,
que, cada vez mais, seja albergue político do mais variado tipo de gente que
tem como principal finalidade o acesso a cargos de poder com as correspondentes
benesses que eles, como ninguém, sabem tirar partido. Nenhum valor move estas
pessoas que, com a maior das facilidades muda de opinião caso os seus
interesses imediatos assim o exijam.
André Ventura, o agora deputado de um
partido de extrema-direita, encaixa-se perfeitamente neste quadro como se pode verificar
pela comparação das ideias que defende na sua tese de doutoramento concluída em
2013 com o seu pensamento político atual. Como muito bem afirma Daniel Oliveira
(DO) na sua crónica de ontem no “Expresso” Diário, “o contraste
entre o discurso político e académico [de Ventura] não poderia ser mais abissal”.
Aliás, a forma
certeira como DO desmonta as contradições do actual líder do “Chega”
levaram-nos a deixar aqui o texto completo cuja leitura se faz com muito gozo. (Para facilitar a sua leitura, retirámos quase todos os links)
Em 2013, André Ventura entregou a sua
tese de doutoramento na Universidade de Cork, na Irlanda. A tese é sobre as
políticas antiterroristas depois do 11 de setembro. Em torno do clima de medo e
do aproveitamento político que foi feito desse medo, com redução de garantias
para os cidadãos e leis securitárias que ele visivelmente deplora. Aquilo a que
o jurista chama “lei criminal do inimigo”. Tem como citação recorrente, em tom
elogioso, Boaventura de Sousa Santos. Sim, estou a falar do André Ventura que
todos conhecemos.
Como é de acesso restrito até 2022, o “Diário
de Notícias” foi consultar a tese na Biblioteca Nacional. O contraste entre o
discurso político e académico não poderia ser mais abissal. Mesmo o que num e
noutro é matéria de opinião. Na sua tese, André Ventura assinala que, tendo
como “fundamento moral o medo”, foram aprovadas “medidas restritivas e
altamente intrusivas das liberdades dos cidadãos”. Um efeito que se sentiu em
Portugal, com “enorme expansão de poderes policiais” e “degradação de direitos
fundamentais” que afetaram a privacidade dos cidadãos. Ventura não fez a coisa
por menos: “Em apenas dez anos, Portugal e Espanha recuaram um século em termos
de privacidade dos cidadãos e da interferência do Estado”. E denunciava uma
“enorme expansão dos poderes policiais em Portugal”.
É este mesmo académico, preocupado com a
expansão de poderes policiais e a degradação dos direitos fundamentais dos
cidadãos que, menos de cinco anos depois, fundou um partido que se assume,
“para usar a terminologia dos seus adversários, sem quaisquer complexos, como um
partido ‘securitário’” . Entre os “seus adversários” está, portanto, o doutor
André Ventura. O mesmo homem que se preocupava com a expansão de poderes
policiais diz que “vivemos num tempo em que fazemos dos bandidos heróis e dos
polícias vilões”. E bem longe das suas preocupações com a “subversão do modelo
constitucional”, quer “quebrar o sistema político português, acabar com a III
República e iniciar uma outra”.
Não há dois Ventura. Há apenas o que
escreveu a tese de 2013. Aos seus pares, académicos que respeita e por quem gosta
de ser respeitado, diz o que pensa. Aos seus eleitores, que considera demasiado
ignorantes para ouvirem o que ele diz entre doutores, dá-lhes frases fáceis.
Nenhum valor move a sua carreira política. Antes um verdadeiro fascista. Esses
podem ter as convicções erradas, mas ao menos estão lá
Mas o ideal é olhar para pormenores. Na
sua tese, André Ventura assinalava com preocupação a evolução da opinião
pública espanhola quanto à pena de morte e qualquer tipo de prisão perpétua,
incluindo para o crime de terrorismo. Ainda em 2015, como assinala Fernanda
Câncio (autora do artigo), Ventura recordava que Portugal foi dos primeiros
países a abolir a prisão perpétua: “E ainda bem!”.
Dois anos depois, já era candidato a
autarca, defendia-a. Exatamente para o crime de terrorismo. E até defende um
referendo para reintroduzir a pena que Portugal foi dos primeiros a abolir e
“ainda bem”.
Teve o mesmo tipo de “evolução” em
relação ao tratamento a dar a agressores sexuais. Em 2013, criticava a criação
de registos de agressores sexuais no Reino Unido, porque “não se fundamentou
numa avaliação ou estudo substantivos mas em opiniões populares expressas nos
media, incluindo a publicação de informação sobre agressores sexuais que
levaram a manifestações de massas, denúncias e vigilantismo.” Agora defende
nada mais nada menos do que a sua castração química. Inadmissível registá-los,
perfeitamente admissível castrá-los.
Na tese, Ventura assinala que a
legislação securitária, para além de ter criado uma “alta conflitualidade
social”, teve como efeito “um aumento da suspeição em relação a determinadas
comunidades”. O pânico social instalado foi responsável “pela estigmatização de
certas comunidades que foram associadas, de modo superficial, ao fenómeno
terrorista”, favorecendo “a discriminação entre cidadãos da mesma comunidade,
baseada nas suas características étnicas e religiosas”. E apontava o dedo à
descriminação praticada pela “polícia e outras forças de segurança”, baseada
“em preconceitos sobre raça, nacionalidade ou religião”.
Três anos depois, o mesmíssimo André
Ventura, já rumo à sua carreira política, escrevia, a propósito dos ataques
terroristas de Nice, que estes ataques “obrigam-nos a um olhar diferente sobre
as comunidades islâmicas na Europa”. E o mesmo homem que antes lamentava a
estigmatização com base superficial perguntava: “Poderemos fazer qualquer
prevenção que seja quando estas comunidades são, em alguns países, de milhões
de habitantes ou, em algumas cidades, 25% da população?” Longe da sua
preocupação com discriminação “baseada nas suas características étnicas e
religiosas” defendia “a redução drástica da presença islâmica na União Europeia.”
Na entrevista que lhe foi feita por
Fernanda Câncio, André Ventura dedicou-se a uma ginástica argumentativa que,
apesar de merecer boa nota artística, chega a ser dolorosa para quem assiste. A
sua grande defesa é esta: uma coisa é a ciência, outra é a opinião. Não há
qualquer problema em, enquanto cientista, defender uma coisa, e como político,
ter a opinião exatamente oposta. Para não se perderem, há um bom exemplo. Na
tese, André Ventura recorda que “Portugal é dos países mais pacíficos do
mundo”. No programa do seu partido diz que é “um país com uma insegurança
crónica”. As duas afirmações contrárias explicam-se, segundo Ventura, porque uma se baseia na “análise dos
relatórios” a outra na “perceção” dele e das pessoas.
O exercício que o político André Ventura
faz, quando usa uma “perceção” que se afasta da realidade mensurável que
conhece, é explicada pelo académico André Ventura, quando nos diz onde nasce o
“clima social de aceitação – muitas vezes manipulado pelos media – face à
adoção de medidas criminais e administrativas que só podem ser caracterizadas
como altamente opressivas e restritivas dos direitos fundamentais dos
cidadãos”. Aquilo a que ele chama “populismo penal” resulta, escreveu na sua
tese, do “processo pelo qual os políticos aproveitam, e usam para sua vantagem,
aquilo que creem ser a generalizada vontade de punição do público”.
O Ventura cientista é o melhor
explicador do Ventura político. Talvez até tenha aprendido consigo mesmo,
percebendo que aquilo que criticava era o que resultava. Agora, ao separar o
conhecimento científico da opinião, diz-nos com toda a clareza que o seu discurso
político recusa as evidências que ele próprio conhece. Que pode dizer que
Portugal é um país inseguro (opinião) mesmo que saiba que é dos mais seguros
(ciência). Esta separação entre conhecimento fundamentado e opinião baseada na
perceção é uma das bases do discurso de um demagogo.
Não é por acaso que a tese de André
Ventura não está disponível online, por esperar publicação há anos. Com a sua
notoriedade, venderia como pãezinhos quentes. André Ventura não quer que os
seus eleitores o conheçam. Não há dois Ventura. Há apenas um: o que escreveu a
tese de 2013. Aquilo são as suas opiniões com base no que realmente sabe. Na
carreia académica que, para vantagem política, até gosta de se vangloriar. O
resto, que forjou nos últimos anos, é o que criou para os seus eleitores.
“Opiniões” que contrariam o que “cientificamente” verificou. Aos seus pares,
académicos que respeita e por quem gosta de ser respeitado, diz o que pensa.
Aos seus eleitores, que considera demasiado ignorantes para ouvirem o que ele
diz entre doutores, dá-lhes frases fáceis. Ventura, o mais elitista dos
políticos.
Diz-se que quando concorreu
à Câmara Municipal de Loures André Ventura mandou fazer um estudo de opinião.
Foi aí que percebeu que a questão dos ciganos rendia votos e definiu a sua
“opinião” sobre o tema, que contraria a a sua preocupação com a “estigmatização
de certas comunidades” que ainda há muito tempo considerava “superficial”.
Nenhum valor move a carreira política de André Ventura. Antes um verdadeiro
fascista. Esses, ao menos, têm convicções. Podem ser as erradas, mas ao menos
estão lá. Esses alimentam o ódio em nome de uma coisa que, nas suas mentes
retorcidas, consideram ser uma sociedade melhor. Ventura apenas o faz em nome
do seu próprio ego.
Sem comentários:
Enviar um comentário