Ainda há bem pouco tempo ninguém imaginaria
que nesta altura, Jeremy Corbyn fosse o candidato mais bem colocado para
ascender à liderança dos trabalhistas britânicos, ainda por cima com um
programa que o Bloco de Esquerda talvez não o subscrevesse por o achar
demasiado radical… á esquerda, se for para cumprir.
É muito bom que talvez se esteja a
preparar “um terramoto político dentro da social-democracia britânica” e que
esse abalo se faça sentir em toda a Europa. No entanto, estamos tão escaldados
por esperanças que se frustraram rapidamente que, o melhor, será ver para crer,
tendo especial atenção que a Inglaterra tem “duas diferenças assinaláveis em
relação a França, ou Itália, ou Portugal”, como muito bem assinala hoje Francisco
Louçã no seguinte texto (*). A primeira é a ligação histórica do partido
trabalhista ao movimento sindical e a segunda é o país não estar “submetido nem
ao euro nem às regras do BCE”.
Vale bem a pena ler o artigo de Louçã porque
é de excelente qualidade.
Nacionalizar
a grande indústria e recuperar bens públicos, incluindo os caminhos de ferro, o
gás e a electricidade, aumentar a progressividade dos impostos, investir para
criar emprego, reconstruir o serviço nacional de saúde, abolir as propinas nas
universidades, sair da NATO e recusar as aventuras belicistas, terminar com a
opção nuclear das forças armadas britânicas. É o programa de Jeremy Corbyn, que é hoje o
candidato mais bem colocado para ganhar a liderança dos trabalhistas britânicos
(eleições em setembro).
A
explicação para esta ameaça de um terramoto político dentro da
social-democracia britânica parece fácil de entender. Primeiro veio Tony Blair,
que conduziu o partido trabalhista aos crimes de guerra no Afeganistão e no
Iraque, promoveu as parcerias público-privado, atacou os serviços públicos e
afirmou o liberalismo como um dogma económico e financeiro para todo o sempre.
A City reforçou-se e os conservadores voltaram tranquilamente ao poder e lá
permanecem. Depois, o partido trabalhista prosseguiu a mesma política com os
sucessores de Blair, de Brown a Miliband, mesmo que este tivesse prometido uma
nova orientação, frustrando os seus apoiantes.
Ao
longo de vinte anos, a doutrina da terceira via, segundo a qual as eleições se
ganham ao centro com uma política de centro, conduziu à vitória monumental da
direita. Por isso, muitos militantes trabalhistas querem romper com este passado e
Corbyn aparece como o homem certo para o fazer.
Os
cínicos argumentam que Blair tem mesmo razão e que, se o partido virar à esquerda,
a direita se eternizará no poder. Vai ser refrão em Portugal e em toda a
Europa, assustada com esta surpresa. Portanto, a ideia é que tudo deve
continuar na mesma, com o centro a aceitar que a direita determine a única
política admissível. Esta solução é a da eternidade da ordem liberal.
De
facto, os partidos socialistas submeteram-se a tal razão cínica. Não é essa a
história de Hollande? Eleito com promessas gloriosas (fazer frente a Merkel! em
poucas semanas renegoceio o Tratado Orçamental e acrescento um plano para o
emprego!), alinhou-se no consenso europeu e assim ficou. O mesmo se dirá de
Renzi (que já enfrentou uma greve geral contra a mudança da lei laboral), o
mesmo se dirá de Seguro e de Costa (para quem não há vida para além do Tratado
Orçamental e dos comunicados do Eurogrupo), de Sanchez (que quer um ministro
das finanças europeu, como Schauble e à imagem de Schauble) e de todos os
outros.
A
Inglaterra tem no entanto duas diferenças assinaláveis em relação a França, ou
Itália, ou Portugal. A primeira é que o partido trabalhista tem uma história
organicamente ligada ao movimento operário e sindical, o que explica que neste
caso ainda tenha havido gente e convicção para esta aspiração a uma viragem
anti-blairista e anti-liberal. A segunda é que o país não está submetido nem ao
euro nem às regras do BCE e tem assim margem de manobra para políticas
próprias, o que permite um debate mais aberto sobre alternativas realizáveis. A
Corbymania
que tanto incomoda o establishment resulta dessas duas
potencialidades.
Deve
ser levada a sério. É mesmo uma ameaça, porque é mais uma expressão de como os
sistemas políticos subjugados às ideias liberais e à austeridade tendem a
acumular tensões, que em alguns casos começam a explodir: assim começou na
Grécia, continuou em Espanha e chega a Inglaterra. Mas como todos os exemplos
mostram, é preciso muito mais do que um homem honesto, que abomine Blair e os
seus crimes e que queira ser verdadeiro com a sua gente: é preciso ter a
capacidade, o programa e a relação de forças para criar um poder que enfrente o
poder. E isso não se consegue a partir de um partido mergulhado na renúncia e
nos interesses. A divisão do partido trabalhista pela sua direita parece então
ser o destino de uma hipotética vitória de Corbyn — e veremos se todos os outros
candidatos e todos os bonzos do partido não se juntam contra ele. Se se
separarem, ainda bem, não há nada que substitua a clareza de propostas
políticas para um país e o seu povo.
Para
a comparação com Portugal há pelo menos três conclusões evidentes. A primeira é
que não há hoje no PS, nem houve nunca nos últimos trinta anos, quem defenda um
programa que se assemelhe ao do Corbyn, nem sequer parcialmente. Ninguém, nem
um assomo. Os chefes dos sindicalistas do PS, diga-se, costumam ser a parte do
partido mais próxima do PSD. A segunda é que um programa semelhante só é
defendido à esquerda e não ao centro. Mas as esquerdas, que se aproximam desta
energia contra a razão cínica, não adoptam políticas unitárias que criem um
referencial e preferem a política de quintal. A terceira é que os partidos de
esquerda que em Portugal defendem o apoio ao centro, e assim lutam por um lugar
de Secretário de Estado, sentem a necessidade de desgraduar o seu próprio
programa e estão hoje à direita de Corbyn (lembra-se das explicações para a
continuação de Portugal na NATO?).
O
que em todo o caso fica demonstrado é que o mundo gira e avança.
(*) Público
Sem comentários:
Enviar um comentário