José Vitor Malheiros já nos habituou a excelentes textos e o que hoje assina no “Público” não foge à regra. Dá gosto lê-lo, não só pela sua qualidade literária como pela forma como aborda o tema que escolheu.
Se quisermos um exemplo da desumanidade que assume a ideologia neoliberal na sua atuação prática, basta olharmos com atenção para as medidas que o Governo português vem tomando em áreas como a saúde e a segurança social. Os idosos, os desprotegidos e, de um modo geral, os fracos são tomados como uns empecilhos da sociedade onde apenas os mais fortes devem ter lugar.
O texto é um pouco longo mas não damos por mal empregues os minutos que gastarmos a lê-lo.
Pessoas que não conhecemos
Num dos melhores episódios de sempre da série televisiva americana The Twilight Zone, emitido em 1986, Brad Davis e Mare Winningham representam um jovem casal a atravessar um período de enorme aperto financeiro. Uma noite, bate à sua porta um estranho, com uma caixa de madeira na mão, que lhes faz uma proposta inesperada. A pequena caixa tem lá dentro um botão. Se eles carregarem no botão, explica o homem, alguém morrerá, "alguém que eles não conhecem", e eles receberão 200.000 dólares. A proposta é apenas isto e o enredo desenrola-se em torno do dilema moral do casal - um dilema moral mesclado com algum cepticismo. O episódio, intitulado "Button, button", está no YouTube e merece ser visto - e não deve ser confundido com o filme The Box, de 2009, que, apesar de baseado no mesmo conto de Richard Matheson, está para o episódio da Twilight Zone como suor de cavalo para Chanel 5.
Pergunto-me muitas vezes qual seria a opção de um dos esforçados membros do nosso Governo se lhe batesse à porta, numa noite, um estranho de longo sobretudo negro e a mesma caixa na mão, e lhe fizesse a seguinte proposta: "Se carregar neste botão, 20 por cento da população portuguesa morrerá. Mas não serão mortes ao acaso. Os 20 por cento apenas incluirão doentes crónicos, desempregados de longa duração, beneficiários do rendimento social de inserção, idosos pobres, pensionistas, analfabetos, deficientes e indigentes. O que significa que serão apenas pessoas que você não conhece." Que dilema moral! Por um lado, a responsabilidade da morte de milhões de pessoas. Por outro lado, a possibilidade de oferecer à Pátria um renascimento, uma nova fundação. Que salto nas estatísticas! Que país poderia ser este, habitado por jovens saudáveis, por dinâmicos empreendedores e profissionais competentes, um país enfim sem gorduras e superavitário.
A proposta do homem da caixa seria tentadora. Que downsizing do Estado! Que produtividade! Que valor acrescentado! É verdade que haveria custos, mas não há sempre? As pessoas morrem de qualquer maneira. E não é certo que o botão fosse a causa directa das mortes. Seria sempre possível dizer que se tinha carregado no botão para ver se fazia algum barulho... Mas se resultasse... que país! Ficar só com os 80 por cento que interessam! E bem negociado talvez se pudesse passar isso para 70 por cento! (Não, não sejamos gananciosos. Oitenta é muito bom!) Melhor do que uma guerra, porque na guerra fica-se com muitos velhos e estropiados e morrem os jovens. Ai, se houvesse uma caixinha destas!...
Exagero? Apenas um tudo-nada. Porque tudo no discurso e na prática do Governo (deste e de muitos outros) revela este sonho eugenista: como o país poderia ser maravilhoso e próspero se não nos tivéssemos de ocupar dos mais fracos e desprotegidos! O discurso culpabilizador dos desempregados (que não trabalham porque não se adaptaram, que deviam emigrar em vez de ficar por cá) ou dos doentes e idosos (que vão mais aos centros de saúde e aos hospitais do que deviam e que nos obrigam a gastar nestes seus luxos o dinheiro que o país não tem) é um sinal dessa ideologia. Como o é a promoção da "avaliação individual", ferramenta de exclusão por excelência, culpabilizadora dos mais fracos, transformados em bodes expiatórios dos problemas do país. Como o é toda a conversa das "gorduras" que, quando se olha de perto, se percebe que afinal são pessoas. Pessoas descartáveis, que culpamos da falta de eficiência da nossa máquina social. Sub-humanos. Uma vez culpabilizados os desempregados, os doentes, os inaptos, as gorduras, os subsidiodependentes, os ciganos, os imigrantes, os idosos, os pobres, é possível excluí-los primeiro. Pô-los de lado. Despedi-los porque ficaram em último nas avaliações. Não os deixar estudar porque não têm dinheiro. Não os tratar porque não aparecem nos hospitais porque não têm dinheiro para a senha. Ninguém dará por falta deles!
Deixai vir a mim os doentes e os pobres e os sem-abrigo é só para Cristo e para a Estátua da Liberdade. Nesta sociedade só há lugar para os melhores. É isso a produtividade, a eficiência, o progresso.
Depois, quando estão fora de vista e esquecidos, podemos começar a reduzir as suas rações. As rações de medicamentos, de tratamentos, de alimentos, de espaço para viver, de espaço nos transportes, de espaço nas nossas preocupações, de pensões. Houve algum alarme com os 4000 que morreram a mais em Fevereiro? Para quê se já estavam na antecâmara da morte? Para quê se são parasitas que consomem os recursos que poderíamos usar para desenvolver o país, se eles não os gastassem? E eles não são como nós. Nós nem os conhecemos. Morte aos fracos! São eles que têm de dar lugar aos fortes, em nome do futuro. É para o nosso bem. E um dia, se a caixa chegar, poderá parecer a solução mais humana.
Se quisermos um exemplo da desumanidade que assume a ideologia neoliberal na sua atuação prática, basta olharmos com atenção para as medidas que o Governo português vem tomando em áreas como a saúde e a segurança social. Os idosos, os desprotegidos e, de um modo geral, os fracos são tomados como uns empecilhos da sociedade onde apenas os mais fortes devem ter lugar.
O texto é um pouco longo mas não damos por mal empregues os minutos que gastarmos a lê-lo.
Pessoas que não conhecemos
Num dos melhores episódios de sempre da série televisiva americana The Twilight Zone, emitido em 1986, Brad Davis e Mare Winningham representam um jovem casal a atravessar um período de enorme aperto financeiro. Uma noite, bate à sua porta um estranho, com uma caixa de madeira na mão, que lhes faz uma proposta inesperada. A pequena caixa tem lá dentro um botão. Se eles carregarem no botão, explica o homem, alguém morrerá, "alguém que eles não conhecem", e eles receberão 200.000 dólares. A proposta é apenas isto e o enredo desenrola-se em torno do dilema moral do casal - um dilema moral mesclado com algum cepticismo. O episódio, intitulado "Button, button", está no YouTube e merece ser visto - e não deve ser confundido com o filme The Box, de 2009, que, apesar de baseado no mesmo conto de Richard Matheson, está para o episódio da Twilight Zone como suor de cavalo para Chanel 5.
Pergunto-me muitas vezes qual seria a opção de um dos esforçados membros do nosso Governo se lhe batesse à porta, numa noite, um estranho de longo sobretudo negro e a mesma caixa na mão, e lhe fizesse a seguinte proposta: "Se carregar neste botão, 20 por cento da população portuguesa morrerá. Mas não serão mortes ao acaso. Os 20 por cento apenas incluirão doentes crónicos, desempregados de longa duração, beneficiários do rendimento social de inserção, idosos pobres, pensionistas, analfabetos, deficientes e indigentes. O que significa que serão apenas pessoas que você não conhece." Que dilema moral! Por um lado, a responsabilidade da morte de milhões de pessoas. Por outro lado, a possibilidade de oferecer à Pátria um renascimento, uma nova fundação. Que salto nas estatísticas! Que país poderia ser este, habitado por jovens saudáveis, por dinâmicos empreendedores e profissionais competentes, um país enfim sem gorduras e superavitário.
A proposta do homem da caixa seria tentadora. Que downsizing do Estado! Que produtividade! Que valor acrescentado! É verdade que haveria custos, mas não há sempre? As pessoas morrem de qualquer maneira. E não é certo que o botão fosse a causa directa das mortes. Seria sempre possível dizer que se tinha carregado no botão para ver se fazia algum barulho... Mas se resultasse... que país! Ficar só com os 80 por cento que interessam! E bem negociado talvez se pudesse passar isso para 70 por cento! (Não, não sejamos gananciosos. Oitenta é muito bom!) Melhor do que uma guerra, porque na guerra fica-se com muitos velhos e estropiados e morrem os jovens. Ai, se houvesse uma caixinha destas!...
Exagero? Apenas um tudo-nada. Porque tudo no discurso e na prática do Governo (deste e de muitos outros) revela este sonho eugenista: como o país poderia ser maravilhoso e próspero se não nos tivéssemos de ocupar dos mais fracos e desprotegidos! O discurso culpabilizador dos desempregados (que não trabalham porque não se adaptaram, que deviam emigrar em vez de ficar por cá) ou dos doentes e idosos (que vão mais aos centros de saúde e aos hospitais do que deviam e que nos obrigam a gastar nestes seus luxos o dinheiro que o país não tem) é um sinal dessa ideologia. Como o é a promoção da "avaliação individual", ferramenta de exclusão por excelência, culpabilizadora dos mais fracos, transformados em bodes expiatórios dos problemas do país. Como o é toda a conversa das "gorduras" que, quando se olha de perto, se percebe que afinal são pessoas. Pessoas descartáveis, que culpamos da falta de eficiência da nossa máquina social. Sub-humanos. Uma vez culpabilizados os desempregados, os doentes, os inaptos, as gorduras, os subsidiodependentes, os ciganos, os imigrantes, os idosos, os pobres, é possível excluí-los primeiro. Pô-los de lado. Despedi-los porque ficaram em último nas avaliações. Não os deixar estudar porque não têm dinheiro. Não os tratar porque não aparecem nos hospitais porque não têm dinheiro para a senha. Ninguém dará por falta deles!
Deixai vir a mim os doentes e os pobres e os sem-abrigo é só para Cristo e para a Estátua da Liberdade. Nesta sociedade só há lugar para os melhores. É isso a produtividade, a eficiência, o progresso.
Depois, quando estão fora de vista e esquecidos, podemos começar a reduzir as suas rações. As rações de medicamentos, de tratamentos, de alimentos, de espaço para viver, de espaço nos transportes, de espaço nas nossas preocupações, de pensões. Houve algum alarme com os 4000 que morreram a mais em Fevereiro? Para quê se já estavam na antecâmara da morte? Para quê se são parasitas que consomem os recursos que poderíamos usar para desenvolver o país, se eles não os gastassem? E eles não são como nós. Nós nem os conhecemos. Morte aos fracos! São eles que têm de dar lugar aos fortes, em nome do futuro. É para o nosso bem. E um dia, se a caixa chegar, poderá parecer a solução mais humana.
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