É uma pouca-vergonha – a expressão não pode ser mais branda – o número de políticos no activo, afectos à maioria governamental, que preenchem os espaços de comentário nos principais canais da comunicação social. É claro que nos referimos, de um modo particular, às televisões. As excepções só confirmam a regra. Gente que, a coberto de uma ou outra crítica leve ao executivo, só lá vai defender o essencial das posições da maioria de direita e dos chamados partidos da área do poder. Mas, no que diz respeito a jornalistas, a situação não é muito melhor. Apenas em alguma imprensa escrita se sente uma pequena abertura a vozes anti-troikistas, talvez por chegar a muito menos gente…
Escrevia o prof. Boaventura Sousa Santos na última Visão, com muito a propósito, que as civilizações declinam quando as elites políticas que querem servir o povo não o podem fazer e as que se querem servir do povo têm o caminho livre. Na era da informação, impedir que as elites políticas que querem servir o povo possam transmitir às populações as suas propostas para resolução dos principais problemas que nos atormentam é factor determinante para a manutenção no poder daqueles que se querem servir do povo para manterem os seus privilégios intocáveis. Fosse dado às forças políticas anti-troika metade do tempo de antena de que gozam os troikistas e veríamos quanto tempo estes permaneceriam no “arco do poder”. Não é por acaso que, mesmo dando prejuízo, os grandes grupos económicos detêm grossa fatia da comunicação social e também não é por acaso que, à viva força, o Governo Passos/Portas quer privatizar a televisão publica ainda que esta já pouco desempenhe o seu verdadeiro papel.
Para as forças de esquerda, que o são nas palavras e nas acções, as redes sociais vieram possibilitar uma maior abertura para a divulgação das suas propostas embora ainda não cheguem a grossas fatias da população portuguesa. Por isso, é de aproveitar essa abertura para fazer chegar a mais gente ideias que, de outro modo permaneceriam apenas em pequenos círculos. Está neste caso o interessante texto assinado por Rui Tavares que o Público traz hoje e que vale a pena ler com muita atenção.
Passemos às coisas sérias
Agora que Relvas já não lhe pode servir de biombo, nem tampouco Vítor Gaspar, é chegada a altura de nos concentrarmos na fonte do nosso atual desgoverno. Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro.
A verdade sobre Pedro Passos Coelho andou ocultada por razões que vão do fortuito ao cuidadosamente manufaturado. Foram algumas delas o ódio a Sócrates, a presença da troika, o patente ridículo e a suposta competência de cada um dos ministros mencionados na primeira frase, a muita parra e pouca uva das hesitações no parceiro de coligação - e não interessa enumerar mais. Porque a verdade sobre Passos Coelho é que ele é o primeiro-ministro português mais impreparado para o ser desde que a democracia se consolidou. E não, não me estou a esquecer de Santana Lopes.
Debaixo da sua cuidada apresentação, Pedro Passos Coelho esconde uma profundíssima incultura política, económica, jurídica e histórica. Há também ignorância que não só é atrevida, mas ousada mesmo. Passos Coelho atira-se no desconhecido, ora acreditando naquilo que lhe dizem, ora proclamando aquilo que julga ter entendido. Mas acima de tudo é de incultura que se trata: é Pedro Passos Coelho que tem responsabilidade por dois orçamentos inconstitucionais, em duas tentativas sucessivas. E, por isso, é ele que tem a culpa.
Vale a pena explorar esta questão, porque alguma gente parece achar que a Constituição só serve para os tempos fáceis. Precisamente ao contrário, a Constituição é o documento que protege a democracia em tempos ruins. O papel dos tribunais constitucionais, e a importância que eles adquiriram no pós-Guerra, é precisamente a de não deixarem que de novo uma depressão económica possa acabar com o estado de direito. É feliz que em Portugal o Tribunal Constitucional (TC) sirva para isso mesmo, e o argumento sai reforçado pelo facto de terem sido precisamente alguns dos grandes princípios do estado de direito - igualdade e proporcionalidade - que estiveram na base da recente decisão do TC sobre o Orçamento do Estado.Se o pressuposto fosse o de que, porque a troika desceu na Portela ou porque houve um eclipse da Lua, fosse possível agir desrespeitando a igualdade e a proporcionalidade, admitiríamos da mesma forma que a polícia pudesse agir sem proporcionalidade ou que um hospital pudesse tratar os pacientes sem igualdade. Porque um estado de direito intermitente fica sujeito à arbitrariedade, e um estado de direito sujeito à arbitrariedade deixa de ser um estado de direito.
Em suma: a responsabilidade de um primeiro-ministro é o de governar compatibilizando o seu mandato democrático com o estado de direito. Isso toda a gente entende, até a chanceler Merkel, que recentemente disse que não ousaria sequer criticar o Tribunal Constitucional alemão.
Ora Pedro Passos Coelho fez muito mais do que isso. Na sua declaração de ontem usou cinicamente uma sentença respeitante a um desvio três vezes menor do que o causado pela incompetência do governo para culpar o Tribunal Constitucional e fazer dele uma força de bloqueio, perturbando o funcionamento regular das instituições. Se o primeiro-ministro não entende o que quer isto dizer, deveria ser o Presidente da República a explicar-lhe.
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