A destruição do ensino público
encontra-se já em velocidade de cruzeiro, disso não nos restam quaisquer
dúvidas. Também é claro para todos os que seguem com alguma atenção a evolução
do processo educativo em Portugal que esta estratégia não é de agora e, para
isso basta-nos recordar a acção de Maria de Lurdes Rodrigues no consulado de
Sócrates.
No artigo de opinião que
assina esta semana no “Público”, o prof. universitário Santana Castilho aborda
dois aspectos da “criminosa política educativa” que o Governo Passos/Portas tem
levado desde que chegou ao poder. Um deles (cheque-ensino) já abordámos ontem, a
partir de um excelente texto de José Vitor Malheiros e o outro (exame de acesso
à profissão docente) será referido hoje, aproveitando parte do artigo acima
referido.
Comecemos pelo exame e por um
aspecto menos tratado, expediente comum à dupla Lurdes-Crato: não podendo
alterar leis-quadro (Constituição da República Portuguesa e Lei de Bases do
Sistema Educativo), por carência de maioria qualificada de votos, derrogaram-nas
pela via legislativa comum. Assim, quando Maria de Lurdes Rodrigues procedeu à
revisão do Estatuto da Carreira Docente (DL n.º 15/2007), adulterou as
condições de aquisição da respectiva qualificação profissional (n.º 1 do artigo
34.º da Lei de Bases), juntando-lhes, sub-repticiamente, uma prova de avaliação
de conhecimentos e competências. Mas, nesse momento, a prova era necessária
apenas para efeitos de concurso a lugares de quadro (artigos 17.º, 22.º e 36.º
do DL n.º 15/2007). Quando a excrescência foi regulamentada em 2008 (Decreto
Regulamentar n.º 3/2008), foi seraficamente aproveitada a oportunidade para
mais um atropelo. O que na lei dizia apenas respeito à entrada nos quadros foi
estendido a qualquer contrato administrativo. Por peso de consciência e
resquícios de pudor mínimo, a coisa jazeu sem aplicação durante seis anos.
Recuperando-a agora, o Ministério da Educação e Ciência vem, como anteriormente
escrevi, reiterar dois factos: que não confia nas instituições de ensino
superior que formam professores e que os professores não podem confiar no
Estado. Com efeito, as universidades e os politécnicos que formam professores
não são organizações clandestinas. Foram reconhecidas pelo Estado como
competentes para tal. Para operarem têm que obedecer às exigências do Estado,
designadamente no que respeita aos planos de cursos. O Estado fiscaliza-as e
pode fechá-las, se deixar de lhes reconhecer qualidade. O Estado é, pois, tutor
de todas. Mas, mais ainda, o Estado é dono da maioria. Neste quadro, a prova de
avaliação de conhecimentos e competências mostra que o Estado não confia nelas
nem em si próprio. E não venha o secretário de Estado Grancho com os argumentos
que usou para responder à matéria, na última edição do Expresso. Dizer que noutras profissões também é assim, citando
magistrados, médicos ou arquitectos, patenteia ignorância ou desonestidade
intelectual. Das escolas de formação de professores sai-se, legalmente, com um
título profissional e uma licença para exercer uma profissão. Das faculdades de
Direito não se sai magistrado. Sai-se com um conhecimento que abre portas para
diferentes profissões, a que se chega mediante formação e exames
complementares. Das faculdades de Medicina não se sai médico, como das escolas
de Arquitectura não se sai arquitecto. Uma e outra profissão são tituladas
pelas respectivas ordens, que as regulam. Dado o envolvimento de longos anos do
secretário de Estado Grancho na criação de uma Ordem de Professores, ainda que
falhado, a pirueta que protagonizou no Expresso
inclina-me a concluir que, das duas hipóteses, se trata de desonestidade
intelectual. Sustentar, como sustentou, no refinado "eduquês" que
Crato combatia, a necessidade de usar a prova de acesso para aferir
"capacidades transversais", que, especificou, visam "a
mobilização do raciocínio lógico, a resolução de problemas ou a capacidade a
nível da leitura e da escrita", em professores que somaram um mestrado
(alguns até um doutoramento) a uma licenciatura, exercem a actividade docente,
sucessivamente avaliada com as notas máximas, há 10 e mais anos e agora são
equiparados a crianças do ensino básico, é atirar lama sobre quem devia
respeitar e cobrir de ridículo as tretas, vemos agora, que apregoava quando era
presidente da Associação Nacional de Professores.
A tudo isto acresce que, a 28 de
Junho de 1999, um acordo-quadro relativo a contratos de trabalho a termo,
celebrado entre organizações interprofissionais, foi vertido em directiva do
Conselho da União Europeia. E que diz o artigo 4.º do acordo a que passaram a
dever obediência os estados-membros? Que "... não poderão os trabalhadores
contratados a termo receber tratamento menos favorável do que os trabalhadores
permanentes numa situação comparável, pelo simples motivo de os primeiros terem
um contrato ou uma relação laboral a termo ...". Poderá, assim, o Estado
português exigir uma prova aos contratados, que não exigiu nem exige aos
professores dos quadros? Ou teremos, tão-só, maquiavelicamente, Crato a abrir
mais uma divisão purulenta entre os professores de carreira e os contratados,
esmagando o referencial de equidade que deve prevalecer na administração
pública e violando o direito de igualdade de acesso ao emprego público?
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