segunda-feira, 6 de maio de 2019

EM POLÍTICA NÃO PODE VALER TUDO E, MUITO MENOS, MANIPULAR A VERDADE


Deixamos aqui o texto integral da crónica que Daniel Oliveira assina na edição de hoje do “Expresso” Diário porque aquele conhecido jornalista desmonta com mestria “as manipulações, meias verdades ou mentiras” que Costa utilizou na ameaça de demissão do Governo que encenou na passada sexta-feira.
Qualquer líder político tem de ter a noção de que, para atingir os seus objectivos, não pode valer tudo e, muito menos, adulterar a verdade ainda que seja mestre nessa arte. Os factos são sagrados e é muito importante conhece-los em toda a sua extensão para não sermos levados à certa.
O texto que se segue é extenso mas a sua leitura vale bem a pena para aqueles que querem ficar com a noção exacta da realidade relacionada com o processo de contagem do tempo de serviço dos professores.

Os golpes e os contragolpes eleitorais estão a acontecer a uma velocidade tal que é quase tarde demais para comentar uma ameaça de demissão feita na sexta-feira ao fim do dia. Mas, antes de avançar para o recuo do PSD e do CDS e do que será a reação do PS, quero analisar a intervenção do primeiro-ministro. Porque ela foi, a vários níveis, assombrosa. E não o digo no bom sentido que o termo pode ter, apesar da evidente habilidade desta jogada política.
Para avaliar uma ameaça de demissão precisamos de discutir se os argumentos para essa demissão são válidos, independentemente da opinião que cada um de nós tenha sobre o que foi aprovado. Um governo não se demite porque discorda de uma lei aprovada no Parlamento, demite-se se o que tiver sido aprovado puser em causa a aplicação do seu programa. E é bom que fique claro: o programa e o orçamento são os do XXI Governo constitucional, não são nem os dos anteriores nem dos que virão. Não faz sentido um primeiro-ministro demitir-se porque as condições de governabilidade do executivo seguinte estão postas em causa e depois candidatar-se a liderar o executivo seguinte nessas mesmas condições.
Discordo da lei aprovada. Primeiro, porque é inconsequente. Aprovar a reposição integral do tempo de serviço sem prazos nem calendário é enganar os professores. É uma mentira. E também discordo porque sempre defendi que qualquer reposição do tempo de serviço deveria ser acompanhada por uma negociação de uma reforma da carreira dos professores, que se tem revelado financeiramente insustentável. O congelamento cíclico da progressão na carreira não é a forma séria de lidar com isto. Cria imprevisibilidade na vida dos docentes e perturba a vida política. Um governo que estivesse preocupado com a sustentabilidade futura desta carreira e das finanças públicas não se recusaria a repor o tempo que a lei manda contar, fazendo depois conversa sobre os encargos para os governos futuros. Tornaria a carreira dos professores sustentável, para que não fossem necessários novos congelamentos, em troca de repor o que tem de repor. Costa não o fez porque não queria negociar com os professores. Mas isso deixo para outro texto.
Feito este esclarecimento, não me é indiferente o rigor com que António Costa determinou as razões para uma decisão tão grave como uma ameaça de demissão de um governo. E recuso-me a levar a sério qualquer pessoa que, por discordar frontalmente da lei aprovada, me responda que a verdade do que foi dito pelo primeiro-ministro lhe é indiferente. Quem assim pensa merece o pior que a política nos dá. Vamos então à sua intervenção e aos factos.
1. 340 milhões em retroativos “entre este ano e o próximo”
Na sua declaração, António Costa disse que o que foi aprovado na semana passada cria “um encargo adicional de pelo menos 340 milhões de euros entre este ano e o próximo, devido ao pagamento de retroativos relativos a 1 de janeiro de 2019”. Para que fique claro, está-se a falar da entrada em vigor do descongelamento da carreira para dois anos, nove meses e dezoito dias. Os restantes seis anos e meio não têm qualquer despesa a curto prazo, porque não foram aprovados com calendarização.
Em relação ao valor de 340 milhões, António Costa brinca com as palavras para passar uma ideia falsa. É verdade que os encargos são entre este ano e o próximo. Porque o que se passa no ano que vem acontece entre este ano e o próximo. Mas está muitíssimo longe de ser um pormenor que esta despesa que acontece “entre este ano e o próximo” aconteça, na realidade, toda no próximo ano e nenhuma neste ano. Porque é a diferença entre afetar este orçamento de Estado e o seu governo ou não. O jogo de palavras pretende passar uma mentira: que estão criadas condições de ingovernabilidade para este governo e a necessidade de um orçamento retificativo.
Dá-se o caso de os retroativos em causa existirem exatamente para impedir um Orçamento de Estado retificativo. Segundo o que foi aprovado no Parlamento, a contagem dos dois anos, nove meses e dezoito dias (e apenas esta) entra em vigor em janeiro de 2019, mas para não afetar um orçamento de Estado já aprovado só começará a ser paga em janeiro de 2020, com novo orçamento e novo governo. Ao contrário da proposta do governo, que seria aplicada faseadamente à medida que cada professor mudasse de escalão e que, para quem fosse promovido ainda este ano, teria encargos imediatos. Poderia custar 20 milhões ao Orçamento de Estado de 2019. Salvo melhor explicação, o que foi aprovado reduz a despesa para este governo.
Outra questão, bastante relevante, é o próprio valor de 340 milhões. Não faço ideia onde os foi buscar António Costa. O valor tornado público por Mário Centeno há uma semana, resultado desta reposição de dois anos, nove meses e dezoito dias entrar em vigor logo em janeiro, e não de forma faseada, foi de 196 milhões. Segundo os sindicatos, até estes números são muito exagerados. Mas basta ficar por Centeno para detetar o erro. As despesas com retroativos não afetam, ao contrário do que Costa tentou fazer crer com a expressão “entre este ano e o próximo”, o XXI Governo constitucional, não afetando assim as condições de governabilidade e não obrigando a qualquer orçamento retificativo.
2. Orçamento retificativo
A partir daqui, António Costa já não se limitou a manipular palavras, avançou de forma arrojada para a mentira: “a aplicação deste diploma ao ano de 2019 implicaria necessariamente um orçamento retificativo, o que quebraria a regra da estabilidade e da boa gestão orçamental que tem sido cumprida, todos os anos, desde 2016”. Como já expliquei, este diploma aplica-se a 2019 através do orçamento do Estado de 2020 e do pagamento de retroativos. Esta mentira é repetida quando António Costa anuncia a demissão do Governo porque esta medida “compromete a governabilidade presente”. Quando for esta despesa o governo não será este.
3. Os 800 milhões
“A necessária extensão deste diploma aos demais corpos especiais, por si só, implicaria um acréscimo da despesa certa e permanente em 800 milhões de euros por ano.” Já li todo o tipo de números. Os sindicatos dizem que a despesa para a contabilização dos nove anos, quatro meses e dois dias dos professores é menos de metade dos 635 milhões anunciados pelo Governo – os 800 milhões é a contar com os restantes funcionários do Estado em condições similares. O Ministério das Finanças nunca deu os dados concretos que o fazem chegar a este valor. São contas redondas, que não permitem falar de uma despesa “certa e permanente”. Até porque as contas são feitas para um corpo docente envelhecido em que muitas das pessoas se vão reformar ou chegar ao topo de carreira e a quem este acréscimo não se aplicará ou apenas se aplicará muito parcialmente. Não têm todos a mesma idade e o mesmo tempo de carreira pela frente. Pelo que se percebe, o Governo fez contas de multiplicar simples.
O Governo aplica às despesas com as restantes profissões que teriam direito à contagem de tempo a mesma lógica, como se as carreiras fossem iguais às dos professores, em que, como saberão, todos podem chegar ao topo. Ou seja, Costa não mente, mas omite o que fará toda a diferença quando anuncia, por causa desta lei, “cortes no investimento e nos serviços públicos” e “significativos aumentos de impostos”.
4. O “prazo e o modo”
Tentando mostrar que os restantes partidos foram eleitoralistas e que ele se mantém firme à palavra dada, António Costa recordou o que consta nos dois últimos orçamentos de Estado: “A Lei do Orçamento do Estado para 2018 veio impor ao Governo o dever de negociar com os sindicatos ‘a expressão remuneratória do tempo de serviço (…) em corpos especiais, (…) tendo em conta a sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis.”
O primeiro-ministro retirou da citação da norma da lei as duas expressões que lhe tiram razão e lhe complicam a narrativa. Deixo a citação completa, sem estar cortada: “a expressão remuneratória do tempo de serviço nas carreiras, cargos ou categorias integradas em corpos especiais, em que a progressão e mudança de posição remuneratória dependam do decurso de determinado período de prestação de serviço legalmente estabelecido para o efeito, é considerada em processo negocial com vista a definir o prazo e o modo para a sua concretização, tendo em conta a sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis.”
Ou seja, o processo negocial visava definir o “prazo e o modo”, tendo em conta “a sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis”, não o tempo que iria ser contabilizado. A coisa está suficientemente mal escrita para ser lida de várias formas. E foi assim que o Governo lidou com as divergências com o PCP e o BE. E é isto que permite construir uma falsa narrativa: a de que isto surge agora e que a maioria parlamentar tinha aceitado uma coisa que nunca aceitou – a não contagem do tempo integral. E que a prova que tinha aceitado está nos orçamentos de Estado. Pois o que lá está é exatamente o oposto. E a prova que António Costa o sabe é que faz uma citação truncada, em que retira as duas palavras que foram o centro dos problemas: “o prazo e o modo.”
5. Decisão à beira das eleições e as expectativas criadas
Acusando os partidos que viabilizaram pelo voto favorável ou a abstenção a proposta do PSD, António Costa disse que “os portugueses seguramente não percebem que, não tendo nenhum partido proposto que o descongelamento das carreiras fosse acompanhado da recuperação do tempo entretanto congelado, agora à beira das eleições quatro partidos na Assembleia da República se entendam para aprovarem algo que nunca tinham proposto”.
Mais uma vez, não é verdade. Não foi à beira das eleições. PCP, BE e PEV defendem isto há mais de dois anos, como a generalidade das pessoas sabe. Muito mais importante do que isso: foi o próprio Partido Socialista que votou, a 15 de dezembro de 2017, a resolução 1/2018, apresentada pelo PEV, onde se lê: “A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição, recomendar ao Governo que, em diálogo com os sindicatos, garanta que, nas carreiras cuja progressão depende também do tempo de serviço prestado, seja contado todo esse tempo, para efeitos de progressão na carreira e da correspondente valorização remuneratória.” Vou repetir: “todo esse tempo.” Teve os votos favoráveis dos socialistas. Foi o próprio PS que criou a expectativa de que “todo esse tempo” seria contado.
6. A desigualdade
Disse António Costa: “A restrição desta solução aos professores e restantes corpos especiais colocaria em situação de desigualdade os demais funcionários públicos e, convém acrescentar, todos os portugueses que sofreram nos seus salários, nos seus empregos". Este argumento merece discussão, pois é controverso. Como se escreve no “Diário de Notícias” (https://www.dn.pt/poder/interior/as-imprecisoes-e-incoerencias-na-declaracao-de-antonio-costa-10861752.html), jornal que se deu ao trabalho de fazer uma verificação exaustiva de tão relevante declaração do primeiro-ministro, a generalidade dos trabalhadores da função pública viram, de forma progressiva, as suas carreiras ficarem na situação em que estariam se não tivessem sido congeladas. Acontece que a natureza das carreiras é diferente.
O Governo encontrou aquilo que considera ser uma solução “equitativa”. Remeto para o texto do DN a explicação de como é bastante questionável que a solução seja, de facto, justa. Deixando apenas claro que a igualdade é, em carreiras totalmente diferentes, uma impossibilidade prática. Porque a desigualdade já está nas próprias carreiras. Já para não falar do argumento da igualdade com o sector privado depois de o Governo ter aprovado um salário mínimo mais alto para os funcionários do Estado do que o salário mínimo nacional. Os argumentos não podem mudar conforme as conveniências.
7. A intransigência sindical
A afirmação da intransigência dos sindicatos está, como o ponto anterior, sujeita a interpretação de cada um. Disse o primeiro-ministro: “durante este longo período confrontámo-nos com a continuada intransigência sindical, que nunca se moveu da repetida reivindicação de nove anos, quatro meses e dois dias, recusando sistematicamente as propostas do Governo.” Sim, os sindicatos nunca aceitaram menos do que a contagem integral do tempo de serviço. Assim como, à mesa das negociações (apesar das posições prévias e posteriores de sentido oposto), o Governo também nunca aceitou outra coisa para além dos dois anos, nove meses e dezoito dias, mesmo depois de um veto presidencial que o mandou negociar. É caso para dizer que estiveram bem um para o outro. E houve uma total indisponibilidade para transpor essa contagem de tempo apenas para efeitos de aposentação, proposta que muito provavelmente acabaria por ser aceite pelos sindicatos. A verdade é que o Governo não tinha interesse em chegar a um acordo e até tinha, como se vê agora, algum interesse em chegar a um confronto próximo de eleições.
Conclusão
Estas manipulações, imprecisões e mentiras não são irrelevantes quando um governo ameaça demitir-se porque, segundo as palavras do seu primeiro-ministro, perdeu as condições de governabilidade. Não é irrelevante que, usando a expressão dúbia se pretenda passar a ideia de que se gastarão 340 milhões (valor diferente do anunciado por Centeno) “entre este ano e o próximo ”, se insinue que há retroativos a pagar este ano e que até se diga, mentindo, que terá de ser aprovado um orçamento retificativo. Não é indiferente a falta de rigor com que se lança a previsão de 800 milhões para falar do futuro, nem que se omita que tal valor não tem prazos e está sujeito a condições. Não é sério fingir que o PS não votou uma recomendação ao Governo para que “seja contado todo esse tempo”. E esconder, numa citação truncada, que o que estava em negociação com os sindicatos era o “tempo e o modo” da reposição do tempo de serviço.
A proposta do PSD aprovada também não é séria, porque não se compromete com nada do que é relevante. Todo este processo não é sério, porque o Governo, que agora se mostra preocupado com a sustentabilidade da despesa, nunca quis negociar a carreira dos professores de forma a torná-la sustentável. Isso, muito mais do que a contagem do tempo passado, terá peso para os governos futuros. É grave que uma maioria de que dependem conquistas para milhões de portugueses seja posta em causa por causa disto. Mas nada autoriza que uma ameaça de demissão se tenha baseado em manipulações, meias-verdades ou mentiras. Façamos um julgamento do comportamento de cada partido e do Executivo. Mas com base nos factos.

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