A fantochada judicial que levou à
destituição de Dilma Roussef, ao afastamento do PT do poder assim como a acusação
de corrupção a Lula da Silva com a sua consequente prisão e impedimento de se
candidatar à Presidência da República nas eleições brasileiras de 2018, acaba
de ser completamente desmascarada, conferindo aos democratas de todo o mundo
uma saborosa mas incompleta vitória.
Não tenhamos dúvidas de que as informações
agora publicadas vêm dar razão àqueles que sempre acreditaram na inocência de Lula,
suspeitando fortemente que o direito foi usado no Brasil como arma política,
numa suja trama para derrotar um Governo democraticamente eleito e impedir a
vitória de um candidato presidencial através do voto popular.
Muita tinta irá correr a propósito da
actual situação que se vive no Brasil mas há um terrível lamento que, desde já,
tem de ficar no ar: começamos a recear que a justiça passe a desempenhar neste
país, mas não só, o papel que os golpes de estado militares levavam a cabo
ainda há pouco tempo – a destituição de governos democraticamente eleitos.
O texto que apresentamos a seguir constitui
um artigo de opinião assinado por Carol Proner e Juliana Neuenshwander, Doutoras
em Direito, professoras da UFRJ e membros da Associação Brasileira de
Juristas pela Democracia (ABJD), que analisam as recentíssimas revelações do
The Intercept, as quais trazem à tona a verdade da trama que no Brasil levou ao
poder, de forma fraudulenta, a extrema-direita mais abjecta.
A comunidade jurídica brasileira reagiu
em estado de choque às informações reveladas pelo portal de notícias The
Intercept. Caso sejam confirmadas, essas notícias podem comprovar um dos
maiores exemplos de lawfare do planeta.
A palavra lawfare é utilizada para apontar uma situação de
“guerra jurídica” ou uso do direito como arma política para derrotar governos
ou substituir regimes políticos.
Os documentos obtidos pelo jornalista
Glenn Greenwald e sua equipe confirmam a desconfiança de especialistas que já
consideravam a Operação Lava-Jato, como se auto-intitulou uma
equipa anticorrupção no Brasil, um exemplo daquilo que pode ser chamado também
de “political justice”, expressão usada pelo jurista alemão Kirchheimer
para falar do uso de procedimentos judiciais para fins políticos.
Já se sabia que, sob o pretexto de
combater a corrupção a qualquer preço, na Operação Lava-Jato os
procuradores e juízes violaram leis processuais e garantias constitucionais,
como a presunção de inocência. Mas as revelações que agora vieram à tona são
muito mais graves.
Os procuradores da Lava-Jato,
hipervalorizados pela media hegemónica, com o tempo conquistaram poderes
e competências excepcionais para criar uma equipa especial, atraindo para uma
só repartição judicial, na cidade de Curitiba, processos judiciais que não
deveriam originalmente ser julgados e processados ali. Desta forma esses
processos, forçosamente conexos, foram submetidos a um mesmo juiz.
Foi assim que Sergio Moro se consagrou
como herói nacional contra a corrupção, centralizando todos os processos e
desfrutando de popularidade jamais vista no judiciário do país.
O estilo do magistrado, posteriormente
nomeado ministro da Justiça pelo Presidente, Jair Bolsonaro, sempre foi
singular, destoando da discrição recomendada pela lei da magistratura. A
extravagância em comparecer a eventos sociais e premiações [cerimónias de
entrega de prémios], além de sua forte presença nos meios de comunicação, produziu
grande poder mediático e o constrangimento das demais instâncias do judiciário,
em parte inebriadas pela comoção popular mediaticamente forjada.
Esse alinhamento entre a instância
judicial de Curitiba, a media empresarial e a opinião pública criou condições
para que a lei penal fosse aplicada de forma cada vez mais arbitrária. Exemplo
são as chamadas “conduções coercitivas” transformadas em espectáculos
mediáticos e as longuíssimas prisões preventivas, a fim obter delações.
As delações premiadas são uma inovação
recente no Direito processual penal brasileiro, espelhada no modelo do USA, e
na Lava-Jato foram negociadas com ampla margem de liberdade e abuso
pelos acusadores. Acrescenta-se ainda que a media empresarial obtinha
semanalmente informações privilegiadas de inquéritos e processos sigilosos,
vazados criminosamente por agentes públicos que estavam obrigados a
protegê-las, o que era utilizado para a construção de um clima manipulado de
indignação pública.
Os processos contra Lula sempre foram os
mais violentos e mediáticos, sendo em tudo excepcionais: nos tempos urgentes do
processo, na prisão antecipada e nas negativas aos direitos políticos e civis,
desrespeitando até mesmo decisão obrigatória das Nações Unidas.
Centenas de juristas democráticos criticaram
duramente a sentença do juiz Moro que condenou Lula à prisão, pela ausência de
provas e justa fundamentação. A trama para que essa condenação fosse possível
pode ser conhecida pelas revelações do The Intercept, que trazem conversas
entre o juiz do caso Lula e o acusador, nas quais foram definidos os tempos e o
ritmo processual, o uso de provas e testemunhas, a relação com a imprensa e com
os demais poderes.
Os diálogos divulgados sugerem que o
juiz Moro orientava clandestinamente os trabalhos da acusação, o que está em
contrariedade à Constituição brasileira, que obriga a imparcialidade dos
magistrados. Aquele que acusa não pode ser o mesmo que prolata a sentença, e o
juiz/acusador Moro atuou ao mesmo tempo em dois lados do processo, o que é uma
violação do Direito.
Num dos trechos revelados, no tempo em
que o juiz Moro pedia “desculpas” ao Supremo Tribunal por vazar, ilicitamente,
as gravações de uma conversa entre a então Presidenta, Dilma Rousseff, e o
ex-presidente Lula, ele também trocava mensagens com o acusador Deltan
Dallagnol: “Não me arrependo do levantamento do sigilo. Era melhor decisão. Mas
a reação está ruim” (sic). Noutro trecho, Moro cita uma colega de Dallagnol e
recomenda que ela receba melhor treinamento para a inquirição de testemunhas.
Moro também recomenda que Dallagnol busque determinada prova contra Lula. Em
mais um trecho, o juiz chega a reclamar que os acusadores deviam acelerar suas
operações.
O conjunto de informações, parte pequena
do que promete ser revelado em breve, pode ser a confirmação do que já se sabia
desde muito: que no Brasil uma trama complexa e perversa sequestrou a autonomia
e a independência do poder judiciário. Esse conluio comprometeu o destino
político do Brasil desde 2016 e talvez muito antes, já que as evidências são as
da relação promíscua entre os procuradores e agências públicas e privadas dos
Estados Unidos para a construção de acordos de assunção de responsabilidade por
parte das empresas brasileiras implicadas em corrupção.
Esses acordos geraram recursos que, mais
tarde, os membros da Lava-Jato pretenderam eles mesmos gerenciar por
meio de uma fundação privada, tendo sido nisso impedidos pelo Supremo Tribunal
brasileiro.
Num cenário de crise económica e
desestabilização política, as eleições presidenciais de 2018 foram, em grande
medida, também decididas pela Lava-Jato. Ao ser condenado e preso pela
trama dos procuradores e juízes de Curitiba, Lula não pôde se candidatar às
eleições, quando era justamente o candidato favorito. A Lava-Jato abriu
espaço para a eleição de Jair Bolsonaro, que posteriormente premiou o juiz que
condenou Lula, Sérgio Moro, fazendo dele seu ministro da Justiça.
As revelações do The Intercept finalmente trazem à tona a verdade. E
mostram ao Brasil e ao mundo os riscos que a democracia corre quando o povo é
enganado por fake news e pelo uso perverso do Direito, quando acreditava
que tudo o que se fazia era combater a corrupção.
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