Muitas vezes se afirma que não há
diferenças em matérias políticas entre esquerda e direita. A verdade é que a
realidade não é esta e aí está como prova o debate que actualmente tem lugar na
sociedade portuguesa sobre as PPP da saúde. De certa forma, chegou o momento da
verdade em que cada partido mostra de que lado está da trincheira no que diz
respeito à aceitação ou rejeição do programa neoliberal das PPP numa área tão
determinante como é a dos serviços essenciais para a vida de todos nós.
No que diz respeito à direita, estamos
conversados porque é bem clara na vontade de atribuir aos privados grossas
fatias do Orçamento do Estado para gestão dos hospitais públicos, ainda que com
os desastrosos resultados que se conhecem. Em relação à esquerda é que se
lamenta as posições do PS e, principalmente, do PCP, quando está em causa, de
forma tão evidente, o interesse da esmagadora maioria dos portugueses.
No texto seguinte que transcrevemos do “Expresso”
Diário de hoje, Francisco Louçã afirma com argumentos muito convincentes a sua
oposição à gestão dos hospitais públicos por entidades privadas, acabando por
concluir que “ou Portugal as enterra ou dá vencimento ao programa neoliberal que promove”
as [PPP] na saúde.
O incêndio nacional sobre as PPP da
saúde é revelador de duas tensões que nos vão acompanhar por muito tempo: a
mais prosaica, a devoção partidária, que não tem nada de novo se não a subida
da temperatura com a aproximação de eleições, e a mais consequente, a disputa
sobre o programa neoliberal para Portugal.
É uma fatia pequena do orçamento do SNS,
garante o primeiro-ministro. Não, são dois mil milhões de euros por
legislatura. Mais do que isso, dão aos hospitais privados a gestão de grandes
hospitais públicos e esta é a primeira grande porta aberta na concessão de
serviços essenciais aos privados. As PPP são por isso uma vitória estratégica
do programa neoliberal e todas as escaramuças a que assistimos se medem por
essa bitola: nem a direita, nem os grupos económicos aceitarão um recuo depois
de terem estabelecido este poder. Com as PPP, os grupos empresariais promovem a
ideologia da eficiência do privado (mas os gestores são em vários casos os
mesmos, veja-se um secretário de Estado da saúde do PS transferido para
presidente da Associação dos Hospitais Privados), dirigem vastas equipas de
pessoal da saúde que também mobilizam para os seus próprios hospitais e ainda
procuram tornar hegemónica a ideia de que os contribuintes devem pagar uma
renda à finança para nos prestarem cuidados vitais.
Esta trincheira é
essencial porque é até hoje a única. Em Portugal os governos conseguiram a
privatização dos CTT e concessões de transportes públicos, mas sabem que é
muito mais impopular prosseguir esse vendaval nos serviços essenciais para a
vida. Não há uma alma que se atreva a clamar pela entrega das universidades
públicas à gestão pelas privadas. Houve tentativas para entregar parte do bolo
da segurança social à gestão por fundos de pensões, mas ficaram pelos ensaios. Não
se atreveram ainda a propor a gestão privada das prisões ou dos cemitérios,
virá o dia. No fim das contas, só têm as PPP da saúde e querem manter esse
portal, nada os impede de ansiar por uma nova oportunidade em que cresça o
número dos hospitais presos em tal labirinto. Na saúde está a disputar-se a
batalha mais importante do programa neoliberal. Vai ser feroz e não ficará por
aqui.
As posições partidárias são, por isso,
coerentes – na maior parte dos casos. Percebo bem a posição da direita, que
representa o interesse desses grupos financeiros. Faz o seu papel e com brio.
Não vai desistir, mobilizará todos os meios institucionais em nome dos Mello,
da Fosun e de quem vier. Percebo também a contradição do PS, em que tanta
gente, seguindo Arnaut, acha que há hoje condições para que o Estado proteja o
seu SNS separado dos privados, que fazem o seu negócio nos seus
estabelecimentos, mas cujo governo decidiu manter a avenida para os grupos
financeiros. Fá-lo no momento mais difícil e de maior suspeita sobre todas as
PPP, quando a Polícia Judiciária vai ao hospital de Cascais, se sabe que
doentes foram internados em casas de banho e refeitórios em Vila Franca de Xira
e há indicações de manipulação das listas de consultas em Loures.
Em todo o caso, se o PS se deu sempre
bem com a anterior Lei de Bases de Cavaco Silva (teve maioria absoluta entre
2005 e 2009 e não lhe tocou), agora a sua escolha estratégica é manter as PPP.
Percebo a posição do Bloco, que apresentou a lei escrita por Arnaut e Semedo e
que insiste na requalificação da estrutura do SNS, na promoção das carreiras
profissionais, no fim das PPP e na universalização dos cuidados. Percebo também
que abra caminho a uma solução que simultaneamente faça aprovar uma Lei de
Bases com um novo quadro, conseguindo retirar dele as parcerias e revogar a sua
legislação, e que leve para as eleições de outubro a escolha sobre o futuro
dessa gestão privada da coisa pública.
Só vejo vantagem em que, em vez do
impasse atual, se caminhe para a obrigação de todos os partidos inscreverem nos
seus programas eleitorais a resposta a estas duas questões: querem ou não que
os hospitais privados continuem a gerir os públicos, e que aliança vão
estabelecer para concretizar a sua escolha.
Tenho em contrapartida dificuldade em
perceber a posição do PCP, pois sempre admiti que se oporia à gestão pelos
grupos privados, mas o certo é que permitiu que durante semanas o governo
anunciasse que tinha o seu voto garantido para a continuidade das PPP, sem que
houvesse uma palavra de desmentido. Jerónimo de Sousa alimentou esta charada ao
afirmar que “as PPP não são o alfa e ómega” da Lei, a imprensa e as televisões
deram por certo esse voto vezes sem conta e um editorial de um jornal,
defendendo a posição do governo, chegou mesmo a apresentar esse compromisso
como o exemplo a seguir. Presumo apesar disso que o voto final esclarecerá a
sua posição.
Outros preferiram a conveniência, o que
consigo compreender quando a devoção política se impõe. Um médico, Mário Jorge,
subscreveu numa semana uma carta “ao secretário-geral do PS no sentido de se
opor a esta formulação (da lei proposta pelo governo), propondo que a gestão
dos estabelecimentos do SNS seja pública. É que as PPP configuram um inequívoco
conflito de interesses entre quem opera no mercado dos cuidados de saúde e gere
simultaneamente estabelecimentos do sector público”, e, na semana seguinte,
sabendo que o PS quer mesmo manter o “inequívoco conflito de interesses”,
apelou à esquerda para o aceitar, dado que “hipervalorizar as PPP desvalorizando
o que já foi conseguido” é “uma atitude irrealista pouco consentânea com a
defesa do SNS”.
Em qualquer caso, se há uma
lição destas semanas, é não se dança na corda bamba em matéria de PPP. Ou
Portugal as enterra ou dá vencimento ao programa neoliberal que as promove.
Afinal, há mesmo uma diferença entre a esquerda e a direita.
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