Tendo
como pretexto o “Brexit”, José Vítor Malheiros assina um artigo de opinião
(título acima) de altíssima qualidade no Público de hoje – seguramente entre o
que de melhor veio alguma vez à estampa neste diário – sobre a dignidade de
povos e indivíduos, espezinhada pelos actuais donos disto tudo a nível da União
Europeia (UE). Curiosamente a UE foi criada para fomentar a paz entre os povos
europeus e, com o rumo que vem tomando, está a estimular ódios e a ressurreição
de antigos fantasmas que todos nós já pensávamos extintos. Tempos muito
difíceis se avizinham.
A
discussão sobre o “Brexit” prossegue, sem dar sinais de esmorecer. Antes pelo
contrário. A tempestade que ninguém esperava ainda está longe de revelar o seu
comportamento futuro e as ondas de choque mal começaram a fazer-se sentir. Os
avisos sobre a intensidade e a duração da tormenta que vai afectar o Reino
Unido, cada um dos seus reinos constituintes e todos os seus parceiros
económicos e aliados políticos e militares continuam a multiplicar-se e as
vozes que defenderam a saída são hoje menos loquazes, ainda que não pareçam
menos empenhadas.
Todos
sabem que se avizinham tempos complicados, mas os defensores do “Remain” têm a
tarefa facilitada. É o discurso político mais fácil do mundo. “Não fizeram o
que eu disse, agora vai ser o fim do mundo e não há nada que se possa fazer
para evitar o desastre. E, ainda que houvesse, não me cabe a mim remediar um desastre
para o qual não contribuí.” É um discurso fácil e de acordo com o ar do tempo:
este tempo de uma política para quem a democracia não está na moda, onde os
políticos mal conseguem controlar a sua raiva quando os cidadãos falam e os
dirigentes nacionais acham que não têm de assumir responsabilidades ou
lideranças porque, afinal, são os mercados que mandam e eles apenas estão lá
para abrirem as portas da casa quando os patrões aparecem para passar o
fim-de-semana.
É
significativo que, depois do período de demagogia máxima da campanha britânica
(onde o “Remain” repetiu que os direitos humanos apenas existiam no Reino Unido
graças à União Europeia, o que deve ter feito algumas figuras históricas
britânicas dar uma volta na tumba) o debate se tenha centrado na economia e na
finança, de acordo com o velho princípio de que os eleitores votam com a
carteira. É significativo porque o recurso a esses argumentos prova que muitos
políticos, no RU, na UE e fora dela, euro-entusiastas e euro-críticos,
continuam a não perceber que algo se partiu na relação que já existiu em tempos
entre uns quantos milhões de cidadãos europeus e a ideia da Europa corporizada
na UE.
Até
pode ser verdade que os eleitores votam com a carteira, mas há valores para
além da carteira que continuam a ser relevantes e que, em certas
circunstâncias, se tornam determinantes. Estou a falar de algo cujo significado
muitos em Bruxelas não conhecem. Estou a falar de dignidade. Uma palavra cuja
evocação faz Durão Barroso sorrir durante as viagens aéreas com que cruza o
Globo para servir os seus 22 empregos. Uma palavra que faz Jean-Claude Juncker
sorrir durante os interlúdios etílicos em que sonha com os 22 empregos que as
indulgências fiscais que pôs em prática no Luxemburgo lhe trarão como
reconhecimento da sua actividade política.
E
no entanto, uma certa ideia de dignidade foi sempre uma das mais importantes
forças motrizes da história, para o melhor e o pior. Milhões de homens e
mulheres escolheram morrer de pé em vez de viver de joelhos em nome dessa coisa
vaga chamada dignidade, que somos incapazes de definir quando a temos mas que
sabemos imediatamente que perdemos no momento exacto em que no-la roubam. Essa
dignidade depende da liberdade mas exige também algo ainda mais simples: o
respeito que as pessoas de bem dedicam umas às outras. Para mim, o momento onde
a UE mostrou o grau da indignidade a que estava disposta a chegar aconteceu na
longa noite onde Tsipras foi submetido à sua sessão de waterboarding, uma sessão de humilhação
levada a cabo pelo Conselho Europeu. Para mim, esse foi o dia em que a UE
morreu. O dia em que o copo de cristal se partiu, sem esperança de reparação.
Muitos
políticos, no RU, na UE, em Portugal, não percebem que, para além da carteira,
as pessoas votam também com a cabeça, que consegue imaginar futuros
completamente diferentes do presente, e com o coração, que lhes dá o ânimo para
se sacrificarem no presente em troca do orgulho de se poderem olhar no espelho
sem vergonha e olhar os filhos de cabeça erguida.
É
porque a UE já não sabe o que é a dignidade que deixou de conseguir conquistar
algo para além da carteira dos europeus.
Os símbolos dessa indignidade
multiplicam-se. É Juncker dizendo aos eurodeputados britânicos com um
descaramento inaudito que já não deviam estar no Parlamento Europeu (ele, que,
ao contrário deles, nem sequer foi eleito para o seu cargo). É o mesmo Juncker
ameaçando o RU com um divórcio litigioso (com que autoridade? com que mandato?)
para aterrorizar os outros países que se atrevam a referendar a permanência na
UE e os cidadãos que queiram votar contra. É Valdis Dombrovskis ameaçando
cortar os fundos estruturais para Espanha e Portugal. É Schäuble ameaçando
Portugal com um segundo resgate por termos a veleidade de ter um governo de
esquerda, apesar de continuarmos a acatar todas as imposições de Bruxelas. São
todas as pressões em defesa de sanções a Portugal, sem outro sentido que não
seja quebrar a espinha a um país que, depois de andar de joelhos, teve um
arroubo de dignidade e decidiu levantar a cabeça. Esta é a indignidade de que
muitos europeus (cada vez mais) preferem fugir. Ainda que paguem essa veleidade
com a carteira. A dignidade não tem preço. Há quem não perceba.
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