O
objectivo imediato do julgamento e condenação de Lula é impedir que ele se
recandidate à Presidência da República do Brasil, numa altura em que as
sondagens lhe são francamente favoráveis.
Mas
a questão de fundo é outra e muito mais significativa do que uma acusação de
corrupção não provada já que corruptos na política brasileira há-os em cada
esquina. O problema de Luís Inácio da Silva é ter feito história no Brasil
apesar dos erros que cometeu.
“As
elites brasileiras escravocratas e gananciosas” como lhes chama Francisco Louçã
no artigo de opinião que assina no “Público” de ontem e que transcrevemos a
seguir, não suportam que a acção de um ex-metalúrgico tenha feito o pobre
sentir-se gente, sair da miséria, sonhar com qualidade de vida, ter filho na
universidade e perceber que outro mundo é possível para além daquele em que
sempre viveu e que lhe diziam ser imutável.
Estas
é que são algumas das razões de fundo que levaram os três desembargadores de
Porto Alegre a “confirmar a condenação de Lula”, aumentando a pena
anteriormente aplicada “para uns bíblicos doze anos e um mês”.
Como
muito bem afirma, no “Expresso” de ontem, Daniel Oliveira, “dantes a elite [brasileira]
aplacava a democracia pondo o exército na rua. Agora não precisa de tanto.” Tem
os tribunais por sua conta para fazerem esse trabalho sujo sem derramamento
(visível) de sangue.
Houve
emoção e suspense, grandes manifestações, transmissão em directo na televisão,
Michel Temer até viajou para fora do país para fingir que não era nada com ele,
e concluiu-se o que se esperava, os três desembargadores de Porto Alegre
confirmaram a condenação do ex-presidente Lula e, obedecendo a desígnios
miraculosos, concordaram exactamente no mesmo aumento de pena para uns bíblicos
doze anos e um mês. O Brasil virou uma página e entrou naquela terra misteriosa
que os mapeadores dos navegantes portugueses marcavam com o hic sunt leones, a partir daqui é a selva. As elites brasileiras,
escravocratas e gananciosas, não admitem a intromissão de movimentos ou
protagonistas populares ou de qualquer entrave à extorsão do pecúlio público.
Como aqui se chegou, no entanto, é cristalino e não sugere qualquer surpresa.
O
objectivo da condenação é evidente. O julgamento foi precipitado através de
procedimentos expeditos porque era necessário impedir a inscrição da
candidatura de Lula no registo eleitoral, tanto mais que, apesar de toda a
pressão, ele tem subido nas sondagens e até aparece como vencedor da segunda
volta em todos os cenários actualmente identificados. A exibida festa dos
candidatos de direita e de extrema-direita, que bem podiam ter-se mantido
sobriamente distantes, ajudou a mostrar o alvo e o serviço. Nenhuma surpresa.
A
protecção do fulgor político do judiciário também não suscita nenhuma surpresa.
Manuel Carvalho escrevia aqui no PÚBLICO que nenhum tribunal europeu aceitaria
as provas que condenaram Lula e tem provavelmente razão. Uma casa que o
putativo comprador e o putativo vendedor afirmam que não transaccionaram; uma
suspeita de corrupção para favorecer vantagens não identificadas, sem qualquer
evidência ou prova; é tudo demasiado manipulável. Acresce que o Tribunal da
Relação terá sentido a obrigação de confirmar a sentença do juiz Moro, um homem
do PSDB que foi simultaneamente o instrutor do processo, o acusador e o
julgador – um conceito de justiça que sobrevive ao arrepio das tradições do
direito pós-Idade Média. Os juízes tornaram-se assim o braço executivo de um
conflito político, mas isso não é inédito. Para mais, precisavam de defender a
“delação premiada”, o negócio que troca absolvições por denúncias, e pedir no
Brasil que todas as acusações de corrupção sejam julgadas da mesma forma é
ingenuidade. Nenhum surpresa, mais uma vez.
As
empresas mais poderosas da comunicação social promoveram o golpe, incensaram os
golpistas, multiplicaram a violência acusatória, convocaram apoios. Mas isso
não é surpresa, a Rede Globo tinha sido no Brasil uma das vozes essenciais da
preparação do golpe militar de 1964. Já aqui escrevi que, em momentos de
tensão, o fim do jornalismo como comunicador de factos, esgotando-se estes no
cabo, no twitter e nos onlines, e a transformação do jornalismo em comentário
partidário, alinha a imprensa nas lutas políticas e até as agrava, porque nessa
guerra não se limpam armas, só conta o efeito imediato, o que acelera os golpes
e contra-golpes. O que será novidade é a capilarização da caça às bruxas nas
redes sociais, transformadas em paraíso de uma comunicação delinquente.
Nenhuma surpresa
ainda na vulnerabilidade do PT, ferido pela sua própria política, desde as
alianças, como a que deu a vice-presidência a Temer e o congresso a Cunha, até
à corrupção, como no caso Mensalão. O PT perdeu-se a si próprio nessas
cedências mas, quando a presidente Dilma foi demitida na base de um processo
escabroso sem qualquer acusação, houve uma resposta popular que se apercebeu do
risco e que se colocou na trincheira que conhecia melhor.
A partir daqui está a terra dos leões, é a selva desconhecida.
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