“O caso em que um
vice-presidente angolano é suspeito de corromper um procurador português” tem
feito correr muita tinta e toda a gente já percebeu que isto apenas acontece
porque se trata de uma figura grada do regime corrupto a semi-ditatorial que
vigora em Angola. Também já começaram a desenhar-se as linhas que, de alguma
forma, irão safar Manuel Vicente da alegada situação embaraçosa em que se terá
colocado como possível corruptor, crime esse praticado em Portugal.
Várias conhecidas personalidades já tomaram
posição, defendendo, uns de forma mais clara, outros de forma mais velada, que
o caso Manuel Vicente acabe em “águas de bacalhau” como diz o povo. São
pressões inadmissíveis sobre a justiça portuguesa que, com todos os seus
defeitos, não pode ser comparável com a justiça angolana em termos de independência
do poder político.
Este tema constitui o interessante editorial de
ontem que se pode ler no “Público”, assinado por Amílcar Correia.
A justiça
portuguesa tem toda a legitimidade para investigar e acusar um ex-vice
presidente de Angola — ou qualquer outro cidadão estrangeiro em Portugal — por
crimes supostamente cometidos em território nacional. O Código Penal português
prevê que os nacionais que cometam crimes no exterior possam ser julgados em
Portugal, o que deveria permitir que outros países pudessem fazer o mesmo com
os seus cidadãos, como dizia esta semana no PÚBLICO
Marinho e Pinto. Só que, infelizmente, a justiça
angolana não tem dado provas de independência face ao poder político. Seria uma
irresponsabilidade da parte portuguesa, por muito que isso favorecesse a
urgente normalização das relações diplomáticas e agradasse à nomenclatura de
ambos os países, abdicar de julgar o caso em que um
vice-presidente angolano é suspeito de corromper um procurador português. A tenebrosa saga de que Luaty Beirão e restantes
activistas foram alvo não são bons pergaminhos para qualquer sistema judicial.
As
transformações que o actual presidente angolano tem imposto na hierarquia do
Estado, ao desafiar a teia de interesses da família que governou o país nos
últimos 38 anos, fazem crer que estamos diante da mudança mais profunda em
Angola após a tomada do poder pelo MPLA. Para que essa transição não seja uma
breve operação de cosmética, e não se limite a uma data de substituições na
cúpula do Estado, era recomendável que ela chegasse à própria justiça, de modo
a que se crie o respeito mútuo de que falava
Joana Marques Vidal. De modo a que não se entenda
uma investigação judicial como a “ofensa” de um regime a outro. Combater a corrupção
quer em Portugal, quer em Angola, requer que a justiça tenha a legitimidade e a
independência para investigar vice-presidentes, primeiros-ministros ou
procuradores da República, e que a democracia tenha a devida consistência para
resistir a qualquer abalo judicial.
A independência judicial não pode ser sacrificada em nome do interesse de um ou
de vários governos, ou mesmo em nome de um suposto interesse diplomático. Isso
seria admitir que o exercício e aplicação da justiça poderia variar em função
da importância do arguido ou do país em causa — que a operação Fizz teria uma
atenção diferente da da operação Marquês. Transformar o caso Manuel Vicente no
julgamento das relações entre Portugal e Angola nem é justo nem diplomático.
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