“A
exposição e vulnerabilidade” a fenómenos de vária ordem como eventos climáticos
extremos, furacões, fogos florestais e outros, cresce na mesma medida em que
vão aumentando as desigualdades a nível mundial.
É
claro que as pessoas mais ricas têm sempre alguma forma de evitar serem
atingidas pelas catástrofes mais destruidoras. Os pobres, pelo contrário,
encontram-se em permanente “estado de excepção” sempre sujeitos ao pior, dada a
fragilidade e vulnerabilidade em que vivem.
É
à volta de mais uma faceta das situações de desigualdade na distribuição da riqueza
que gira o artigo de opinião seguinte que transcrevemos do “Público” de hoje,
cujo autor, João Arriscado Nunes, é investigador no CES e professor na Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra.
“A
tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a
regra”. Esta frase foi escrita por Walter Benjamin em 1940, quando procurava
fugir, através da França, rumo à Espanha e depois ao exílio nos Estados Unidos,
jornada que viria a ser brutalmente interrompida pelo seu suicídio. O contexto
era o da ascensão e triunfo do fascismo e dos meses iniciais de uma guerra que
viria a ser a maior manifestação de violência, morte e destruição da história
da humanidade. A frase ecoa hoje de um modo especialmente vivo, num momento de
grande turbulência como aquele em que vivemos, e que tem sido por vezes
comparado com o período em que se forjaram as condições que levaram à Segunda
Guerra Mundial.
Falar hoje
em estado de exceção evoca, desde logo, a deriva securitária que levou à
suspensão ou limitação dos direitos dos cidadãos, o reforço da vigilância
policial e a ação repressiva dos estados, em países tão diferentes como a
França, a Turquia, o Egito ou os territórios Palestinianos sob ocupação de
Israel. Mas Benjamin convida-nos a olhar mais longe, para o estado de exceção
como uma condição permanente daqueles e daquelas que sofrem diferentes formas
de opressão, pela sujeição a formas de violência que têm na guerra, na
perseguição e no genocídio as suas expressões mais visíveis, mas que são
tecidas quotidianamente pela desigualdade, pela exploração do trabalho, pelo
racismo, pelo sexismo, pela homofobia, por discriminações múltiplas, pela
desumanização da diferença e por ações e omissões de estados na sua função de
proteção dos cidadãos.
A
experiência dos oprimidos evocada por Benjamin, ao considerar que o estado de
exceção sempre foi para estes a regra, desvela a fragilidade e vulnerabilidade
de quem vive em condições de privação ou de extrema desigualdade marcadas pela
ausência da rotina e previsibilidade da vida quotidiana, da degradação de
condições de vida, de trabalho, de habitação, de saúde, de acesso a serviços
públicos. Mas uma das suas manifestações mais visíveis é a exposição a eventos
ou situações extremas, que ameaçam a vida, a saúde e a segurança de uma parte
crescente da população mundial, afetando, de maneiras distintas e com consequências
diferentes, é certo, populações do Norte e do Sul.
Fenómenos
como epidemias de gripe ou de cólera, fogos florestais, vagas de frio ou de
calor, sismos, tempestades e furacões assolaram de forma particularmente
violenta diferentes partes do planeta durante o ano de 2017, temendo-se que o
panorama para o ano que começa não seja diferente. A exposição e
vulnerabilidade a esses eventos crescem à medida que se vão ampliando as
desigualdades à escala mundial, e mesmo nos países mais ricos do Norte, como têm
revelado estudos recentes e um relatório da ONU, publicado em dezembro de 2017,
sobre a pobreza extrema nos Estados Unidos. Para uma parte crescente da
população mundial, a ameaça de exclusão torna as suas vidas ainda mais
precárias perante eventos extremos ou formas várias de violência. Os mais ricos
protegem-se contra os efeitos de alguns desses eventos, seja pela sua maior
mobilidade ou por residirem em lugares considerados seguros, seja, como
aconteceu nos recentes incêndios na Califórnia, pela aquisição de serviços
privados de combate ao fogo. Mas as guerras, os conflitos e os desastres são
também oportunidades a não perder de acumulação de capital. A indústria do
armamento – com a cumplicidade dos estados onde estão sediadas as empresas - e
o tráfico de armas florescem com a proliferação de guerras e de conflitos
armados. Na ilha de Porto Rico recentemente devastada pelo furacão Maria,
repete-se de forma exemplar um cenário já conhecido. Como tem acontecido em
diferentes partes do mundo, nos últimos anos, na sequência da destruição
causada por tsunamis ou por furacões, os desastres são rapidamente
transformados em processos de apropriação do espaço, de privatização de
serviços públicos, como as escolas, e em contratos de reconstrução, em suma, em
novas oportunidades de acumulação de capital, alimentando o capitalismo de
desastre, como lhe chamou Naomi Klein.
É hoje reconhecida a influência da ação humana e, em particular,
da constituição e dinâmica histórica do capitalismo, nas transformações da
geosfera e da ecosfera, nas alterações climáticas globais e na distribuição
geográfica, ecológica e social da vulnerabilidade de populações, comunidades e
territórios. Mas esse reconhecimento deve ser convertido em capacidade
permanente de resposta a problemas que, pela sua natureza, são de ocorrência ou
frequência imprevisíveis. O papel do estado, aqui, é imprescindível, reforçando
todas as vertentes da sua ação orientadas para a proteção e promoção do
bem-estar dos cidadãos, por via de políticas públicas e de arquiteturas
institucionais adequadas. Mas se esse é um dever do estado, não é menos
importante transformar o modo como este se relaciona com os cidadãos,
contribuindo para a constituição de um espaço público de novo tipo, mobilizador
das experiências e dos saberes, das forças e capacidades de uma sociedade capaz
de se imaginar e agir, não como exterior a uma natureza a explorar livremente e
impunemente, mas como uma sociedade-na-natureza. E, claro, capaz de enfrentar
as forças para as quais os desastres, as guerras e a degradação social e
ecológica são, acima de tudo, oportunidades de negócio. Mas este é um tema para
outra crónica.
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