A
generosidade e rectidão da esquerda voltam-se muitas vezes contra si própria. A
“condenação do
ex-Presidente Lula a nove anos e meio de prisão, que no próximo dia 24 será
julgada em segunda instância” é um exemplo disso mesmo. O processo é tudo menos
limpo e tem como único propósito “impedir o regresso de Lula à presidência” do Brasil,
numa altura em lidera as sondagens com algum conforto.
O
que se passa com Lula não é sério pois, para além de estarmos na presença de um
processo judicial viciado, é a própria democracia que está a ser violada,
curiosamente com base numa lei com origem na esquerda e sancionada pelo próprio
Lula em 2010, a Lei da Ficha Limpa.
O artigo
de opinião seguinte, que transcrevemos do “Público” de hoje, assinado por Sylvia Debossan Moretzsohn, Professora da Universidade
Fluminense faz muita luz sobre este processo contra a democracia brasileira.
Se fosse
um julgamento a sério, o resultado não poderia ser outro que a absolvição ou
mesmo a nulidade do processo. Porque o motivo da condenação do ex-Presidente
Lula a nove anos e meio de prisão, que no próximo dia 24 será julgada em
segunda instância, é o famoso triplex do Guarujá, que ele teria recebido em troca
de favores à empreiteira OAS. No entanto, o apartamento nunca esteve em seu
nome, e a recente decisão de uma juíza de Brasília em favor da penhora desse
bem — entre outros do mesmo condomínio — para que a empreiteira quite dívidas
com uma empresa de material de construção deveria ser a prova cabal sobre a
propriedade do imóvel. O termo de penhora foi expedido no início de dezembro e
a informação começou a circular nas redes sociais na semana passada.
O
julgamento, porém, não é a sério — daí as aspas do título, e não apenas pelas
inúmeras irregularidades durante o processo, que levaram intelectuais como
Boaventura de Sousa Santos, em recente entrevista, a considerá-lo “uma farsa”,
mas por algumas manifestações de prejulgamento que dão à sessão da próxima
quarta-feira os ares de uma encenação semelhante à que ocorreu quando a ainda
Presidente Dilma Rousseff apresentou sua defesa no Senado, na véspera de ser
definitivamente afastada do cargo.
A primeira
manifestação foi do próprio presidente do tribunal que julgará Lula agora. Em
agosto do ano passado, tão logo o juiz Sérgio Moro anunciou a condenação do
ex-Presidente por considerá-lo o beneficiário do triplex — esse que agora vai
ser leiloado —, o desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores declarou que a
sentença era “tecnicamente irrepreensível”. Reconheceu, porém, não ter lido a
prova dos autos, que, aliás, Moro não especificou. Mas isso era o de menos:
como diria mais tarde o relator do caso, João Pedro Gebran Neto, a prova não
precisaria ser “insofismável”, bastaria estar “acima de dúvida razoável” para
justificar a condenação.
Para
completar, como há muito tempo se dispensaram os pudores com as aparências, no
início deste mês circulou pelas redes sociais a reprodução de um post em que a chefe de gabinete da presidência do
tribunal, Daniela Kreling Lau, apoiava uma petição online para coletar
assinaturas para a campanha “Lula, o Brasil inteiro exige sua prisão”. O
presidente da casa, porém, entendeu que este era um direito de sua funcionária,
que estaria se manifestando como “cidadã, e em caráter particular”.
Esse
processo, em que chama a atenção a celeridade na apreciação do recurso à
segunda instância, tem o óbvio propósito de impedir o retorno de Lula à
presidência. Tal possibilidade é proporcionada pela Lei da Ficha Limpa —
sancionada, por sinal, pelo próprio Lula, em 2010 —, que põe na mão de três
pessoas — os desembargadores da 8.ª turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª
Região, sediado em Porto Alegre — a decisão sobre o futuro das eleições deste
ano. Daí a mobilização, que ultrapassa fronteiras e reúne intelectuais de
grande expressão internacional na adesão ao manifesto “Eleição sem Lula é
fraude”, com mais de 185 mil assinaturas, e que promete levar uma multidão às
ruas da capital gaúcha no dia do julgamento, alguns em defesa de seu candidato,
que lidera com folga todas as pesquisas de intenção de voto, outros em defesa
da democracia, por entenderem que Lula deve ser julgado nas urnas.
A
possibilidade de recursos diante da previsível condenação permitirá
eventualmente estender a conclusão do processo para até depois da data do
pleito, em outubro. Nesse caso, não é difícil perceber o estado de tensão em
que o país viverá durante a campanha.
À parte as
especulações, que incluem a hipótese de adiar o julgamento, importa assinalar o
grau a que pode chegar a judicialização da política, especialmente quando se
trata de abraçar causas moralizantes ancoradas no eterno mote do combate à
corrupção. Durante a discussão da Lei da Ficha Limpa foram poucos os que, entre
as forças progressistas, alertaram para o equívoco de apoiá-la. Um desses foi
José Luis Fevereiro, dirigente do PSOL, que lembrou no Facebook os motivos de
sua objeção:
“Delegar a
uma casta como a do Judiciário o poder de supervisionar a democracia
brasileira, definindo por decisões de quatro juízes, um de primeira instancia e
três de segunda instância, em quem o povo pode ou não votar nunca me pareceu
uma boa ideia. A maioria do Poder Judiciário, pela sua própria origem de
classe, tenderá a refletir os valores, a cultura e os interesses inerentes a
essa condição. Mais de 400 mil presos provisórios, a maioria ‘pretos pardos e
pobres’, em penitenciárias superlotadas são a prova quotidiana disso. Permitir
restrição de direitos sem condenação transitada em julgado, exceção aberta com
a Lei da Ficha Limpa, mostra como a fantasia da ‘neutralidade das instituições’
contaminou a esquerda.”
Laocoonte foi derrotado em sua tentativa de alertar para o
cavalo de Tróia, mas na sua representação em mármore continua a lutar contra as
serpentes. Ironias amargas trazem também algo de trágico. É com essa ironia que
Fevereiro conclui seu texto: “Naqueles dias de maio de 2010, os perus votaram pela
antecipação do Natal. As primeiras rabanadas serão distribuídas dia 24 em Porto
Alegre.”
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