Como
todos sabemos, no ano que há poucos dias terminou passou o 1º centenário da
Revolução Russa. Ao mesmo tempo, em 2018 comemoram-se os 200 anos do nascimento
de Karl Marx. “Uma não existiria sem outro” afirma e muito bem Joana Mortágua
no seguinte texto que assina no “Público” de hoje. Aproveitando uma coincidência
temporal, a deputada do Bloco de Esquerda escreve sobre o legado deixado pela
Revolução de Outubro. Ainda que o artigo seja longo, a verdade é que a sua
leitura vale a pena e se faz com muito gosto.
Quis a
teia da História, e não certamente a intenção dos seus protagonistas, que na
última noite de dezembro de 2017 encerrássemos o centenário da Revolução Russa
para entrar na comemoração dos 200 anos do nascimento de Karl Marx. Uma não
existiria sem o outro e não fosse a coincidência temporal continuaria a fazer
sentido comemorá-los juntos, embora suspeite que esta não seja uma opinião
consensual no atlas da esquerda.
O debate
sobre o centenário da Revolução foi disso prenúncio. Publicaram-se artigos,
edições especiais de revistas, revisitações de John Reed, escaparates de
“Terror Vermelho”. Esses contributos atuais, a par dos livros que marcaram
gerações, fazem parte da disputa da memória coletiva sobre “os dez dias que
abalaram o mundo”.
É natural
que assim seja. A História não é neutra, tem versões e leituras que se projetam
nas lutas do presente e nos projetos de sociedade que subscrevemos. Os regimes
não se dividem cientificamente entre felizes e trágicos, como se as ideias que
lhes deram origem não tivessem nada a ver com o enredo. Esquecer isto ao
revisitar o abalo de 1917 é apenas uma forma de desmoralização, não do regime,
mas da Revolução.
Encaixa
aqui a frieza com que o centenário foi celebrado na Rússia. No entanto, Putin
não foi o único a retirar carga simbólica ao momento. Em Portugal, durante o
ano, vários artigos limitaram-se a relatar a Revolução de Outubro como uma
simples sucessão de factos históricos, importantes mas demasiado distantes para
mobilizar ódios ou paixões.
É como se
a viragem de um século de convulsões nos obrigasse a perguntar se a Revolução
de Outubro ainda é capaz de entusiasmar espíritos revolucionários no século
XXI. Ou se, pelo contrário, dela apenas resta uma memória incómoda, sem nada
para celebrar.
No PÚBLICO, Manuel
Carvalho escreveu que “O que entre 1917 e 1991 foi
visto como um acontecimento fulcral do século passado parece hoje um exotismo
incidental, insusceptível de festejo ou de condenação”. Como ele, Rui Tavares
foi um dos que afirmou que já não há quem seja capaz de defender o legado da
Revolução Russa. É uma conclusão demasiado precipitada para representar a
esquerda sem equívocos.
Comecemos
pelo fim. Cem anos depois, é pouco sério querer representar a Revolução Russa
como natureza morta no museu do século XX, seja ela classificada como um facto
histórico distante ou uma tragédia inesquecível.
A
condenação do terror não é embaraço em que a esquerda se deixe atrapalhar. O
regime soviético transformou-se num regime bárbaro, abdicou da democracia e, ao
fazê-lo, negou o socialismo. Não era inevitável, mas o passado não se conjuga
no condicional. Dito isto, estará tudo dito sobre a Revolução Russa?
Não. A
revolução socialista também deu origem, no seu tempo e contexto, ao sistema
político e económico que mais poder e liberdade concedeu ao seu povo. Em 1917,
a Revolução foi capaz de retirar a Rússia do feudalismo e lançá-la para a
modernidade com um projeto que inspirou direta ou indiretamente todos os
movimentos progressistas e grande parte das conquistas populares do século XX.
Ainda que
exista um debate sobre o isolamento e a incapacidade de transpor fronteiras
como uma das debilidades da Revolução, só um movimento capaz de mobilizar povos
para além delas poderia ter suscitado o nazismo e o fascismo como reação das
classes dominantes. Da mesma forma que, depois de lhes impor a derrota, o seu
espectro obrigou a cedências do capital que estão na origem dos Estados Sociais
que as elites do século XXI têm vindo a desmantelar.
Foi um
abalo que mudou o mapa da esquerda até aos dias de hoje. Às visões que a querem
apresentar como obsoleta, a Revolução dialoga com o presente através da
atualidade dos objetivos imediatos que proclamou: fim do imperialismo e da
guerra, fim da dívida, distribuição da propriedade fundiária, direito à
autodeterminação, direitos laborais, igualdade entre homens e mulheres,
descriminalização da homossexualidade, legalização do aborto, universalização
do ensino...
A memória
também serve para despertar gerações dos argumentos com que nos querem embalar,
é por isso que interessa disputá-la. A minha geração só conhece direitos graças
a uma longa luta do socialismo, ainda que alguns deles não fossem sequer
sonhados pelos trabalhadores de 1917, conquistas democráticas e sociais,
pluralidade partidária e democracia representativa com sufrágio universal, às
quais nenhum futuro socialismo poderá renunciar.
É por isto
que há uma esquerda que olha para a Revolução de Outubro pelo que foi: um
movimento de esperança para milhões de pessoas que mais tarde viria a
desembocar num regime político de repressão e tragédia. Confundir as duas
coisas tem como único propósito desacreditar qualquer força revolucionária como
uma utopia anacrónica face a um capitalismo perpétuo.
Dizem os
ideólogos contrários que num ideário socialista por concretizar não há mais do
que uma profecia, mas nada tem sido mais profético do que a defesa do
capitalismo. Algumas dessas utopias, como a inquebrável aliança entre
democracia e mercado, acabaram em violentas ditaduras. Outras, como a
mobilidade social e a globalização da riqueza, foram atropeladas pela
austeridade impiedosa. Para milhões de pessoas no mundo, a guerra matou todas as
promessas do capitalismo.
As
transformações impostas ao capitalismo pela globalização, tendo benefícios como
os avanços no conhecimento e na tecnologia, deixaram a injustiça social e
económica como fratura exposta. No entanto, e ao contrário do que diz Paulo
Rangel, o conflito social dos dias de hoje não nasce da clivagem entre “uma
classe globalizada e uma classe não globalizada”, antes da violência dos
poderes económicos no contexto da globalização financeira que gerou novas
formas de exploração. Continua a haver luta de classes, e uma delas está a
levar os povos a uma nova vaga de perda de direitos económicos, sociais e
políticos.
Resta-nos
agora saber se o legado da Revolução Russa nos dá pistas para enfrentar este
novo mundo. E é aí que nos reencontramos com as comemorações dos 200 anos de
Marx. Espera-nos mais um ano de debates, conferências e edições especiais,
chamada à qual o Bloco de Esquerda não faltará e que será tão diversa quanto as
correntes que se reclamam do socialismo moderno.
O
contributo de Marx para a filosofia, economia e teoria do socialismo fundou um
sistema ideológico sem forma política rigidamente pré-definida. De outra forma
o conteúdo de Marx não seria marxista, uma antítese de profecia. O marxismo
enquanto complexo teórico de explicação e superação do capitalismo tem como
pressuposto a emancipação política e social da sociedade a partir de uma classe
em concreto, os trabalhadores. Esta é uma herança que ninguém rejeita, da
esquerda socialista à social-democracia mais ou menos moderada.
Marx
escreveu as bases do pensamento socialista moderno. A Revolução de Outubro foi
a primeira e maior tentativa de fazer o socialismo. Foi a possibilidade de
assalto aos céus projetada para o mundo inteiro. Que dela também tenha surgido
um regime indefensável nunca apagará a esperança que representou para milhões
de pessoas. Celebrar a Revolução Russa e a queda do Muro de Berlim não só não é
incompatível como é condição da esquerda de que me reclamo. Pior seria
sacrificar o papel da memória para o futuro do socialismo em nome de uma
vergonha sem razão.
Dizer que estas ideias morreram com o fim do século XX é tão
absurdo como anunciar o fim da história. O fim das Revoluções, como o fim da
história, não passa de um sonho das classes dominantes. Como poderia ser a
esquerda capaz de abandonar o legado da Revolução? Ficar condenada a sucumbir à
mera gestão do capitalismo, desistir do assalto aos céus? Nunca.
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