Pé
ante pé, assinala-se no ano que agora se inicia o 20º aniversário do primeiro
referendo em Portugal sobre a despenalização da interrupção voluntária da
gravidez (IVG). As forças mais conservadoras e retrógradas da nossa sociedade acabaram
por obter nessa altura uma inesperada vitória por falta de comparência daqueles
que, sabendo haver em Portugal um consenso sobre a necessidade de acabar
definitivamente com o escândalo que constituía o elevado número de mortes de
mulheres devido ao aborto clandestino, encararam o referendo como uma vitória
antecipada e perderam.
Passada
cerca de uma década sobre a promulgação da lei que despenaliza a IVG, o consenso
em Portugal sobre este tema é de tal ordem que entrou com toda a naturalidade
na nossa sociedade.
De
qualquer maneira, como muito bem assinala Ana Cristina Santos (*) no artigo de
opinião que assina no “Público” de hoje, e de onde extraímos o texto seguinte, “as lições do
referendo reportam-se a um tempo que nos pode parecer distante, quase absurdo” mas relativamente às quais não podemos
estar desatentos pois como podemos verificar conquistas civilizacionais
importantes como a despenalização da IVG podem sempre ser revertidas como nos
sugere o exemplo do que agora está a acontecer nos EUA na área dos direitos
sexuais e reprodutivos pela mão do ultraconservador Trump.
Em 2018 assinalam-se 20
anos após a realização do primeiro referendo em Portugal. Corria 1998 e, por
acordo entre dois líderes partidários, a despenalização do aborto aprovada pela
maioria parlamentar ficou sem efeito e foi remetida para referendo, deixando as
mulheres numa situação de vulnerabilidade que se arrastou para a década
seguinte. Recorde-se que foi apenas em 2007, após a notável Campanha Fazer
Ondas com a clínica móvel das Women on Waves e um segundo referendo sobre o
tema, que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) até às dez semanas foi
finalmente despenalizada. Os resultados do exercício referendário são
conhecidos e ensinam importantes lições em matéria de cidadania reprodutiva.
A primeira lição é a da
demagogia. O recurso a argumentos pouco sérios e de honestidade intelectual
duvidosa, repescando velhos fantasmas sexistas, entre os quais o da mulher
promíscua e o da má mãe, foram trazidos para o centro do debate cultural, alimentando
o medo de que, com o direito à escolha, se estabelecesse o princípio do fim da
humanidade. Anunciava-se então o crescimento exponencial do número de abortos e
reincidências, com o associado decréscimo irreparável da taxa de natalidade,
como se esta e aquele estivessem, necessariamente, associados. Toda a
importante reflexão acerca das condições de precariedade laboral que leva a que
muitas pessoas (mulheres e homens, já agora) adiem ou cancelem projetos de
parentalidade ficou por fazer. Curiosamente, ou talvez não, após um período de
estabilização, o número de IVGs tem vindo a diminuir de forma sistemática desde
2012, com 71% dos casos a constituírem a primeira vez em que a mulher abortou
(Direção-Geral da Saúde, 2016). Acresce que, em todos os anos após 2007,
Portugal fica abaixo da média europeia no número de IVGs realizadas.
A segunda lição é a do
défice de laicidade. Para quem julgava que a consolidação democrática havia
dotado o país de mecanismos de proteção face ao poder fáctico de um setor
historicamente conservador face aos direitos das mulheres, cedo percebeu que a
ingerência judaico-cristã não se ficaria apenas pelo silêncio cúmplice. A
influência, direta ou subtil, do prelado católico traduziu-se em formas
diversas que oscilaram entre ameaças de excomunhão a crentes que votassem pelo
direito à escolha e a recuperação de uma retórica caritativa que apelava às
mulheres grávidas que doassem para adoção as crianças que fossem, afinal,
forçadas a ter. Na esteira deste discurso, multiplicaram-se as associações que
prometiam fraldas e leite em pó a troco de uma maternidade não desejada.
A terceira lição é a da
precariedade dos direitos reprodutivos. Se a autodeterminação dos povos
constitui um princípio inalienável desde o fim da Segunda Guerra Mundial, já a
autodeterminação reprodutiva enfrenta inúmeros obstáculos que enfraquecem, em
conteúdo e em forma, o respeito pela dignidade e pelos Direitos Humanos. Apenas
dois exemplos, mais recentes: sabemos hoje, 20 anos depois desse primeiro
referendo, que até 2016 uma mulher solteira não podia recorrer a técnicas de
procriação medicamente assistida sem a tutela de um marido ou companheiro no
quadro de uma relação heterossexual. Sabemos também que, ainda hoje, uma mulher
que decida de forma informada e consensual fazer uso do seu corpo para
facilitar o acesso à parentalidade por parte de outra pessoa, apenas o poderá
fazer de forma altruísta e no quadro estrito de uma situação clínica
comprovadamente impeditiva, o que afasta Portugal de países como a Austrália ou
o Canadá, nos quais a gestação de substituição está regulamentada de forma
abrangente.
As lições do referendo
reportam-se a um tempo que nos pode parecer distante, quase absurdo. A ilusão
que esse distanciamento convoca dilui-se de forma assustadora quando
observamos, entre a incredulidade e a impotência, sinais de contração em
direitos sexuais e reprodutivos não negociáveis em países com democracias que
julgávamos, porventura, consolidadas. Em Janeiro de 2017, no mês em que se
assinalava a legalização do aborto nos EUA obtida em 1973, Donald Trump
anunciou a proibição de financiamento público a grupos internacionais que
realizam abortos ou que prestam informação sobre IVG. Essa decisão acontece num
contexto em que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, morrem a cada
ano 47 mil mulheres por complicações decorrentes de IVGs feitas de forma ilegal
e insegura. Mais recentemente, em Dezembro, a Administração Trump anunciou uma
lista de palavras a serem banidas das agências de saúde norte-americanas, incluindo
Centros de Prevenção e de Controlo de Doenças. Dessa lista de palavras
proibidas constam feto, transgénero, diversidade e vulnerabilidade, bem como as
expressões “assente em evidência empírica” ou “fundamentado em dados
científicos”.
(*) Investigadora do CES, Coimbra
Sem comentários:
Enviar um comentário