sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

“SE ELES SE AJOELHAM, NÓS TEREMOS DE NOS LEVANTAR”


João Camargo, investigador em alterações climáticas, é o autor do artigo de opinião seguinte que transcrevemos do “Público” de hoje.
Perante a submissão do Governo português aos interesses das empresas petrolíferas e de energia, Camargo termina o artigo com uma expressão relativamente à qual só poderemos estar de acordo: “Se eles se ajoelham, nós teremos de nos levantar.” Isto significa tão só que se o Governos se coloca de cócoras perante os interesses daquelas empresas, então, “nós”, população, teremos de resolver este problema na rua, com o apoio dos movimentos sociais.
De novo se constata que as instituições oficiais, na maior parte das vezes, dominadas por interesses contrários aos das populações, são incapazes de resolver os grandes problemas das sociedades. Por isso, a rua pode ter uma acção fundamental caso se mobilize com força.
As recentes relações do Governo português com as empresas petrolíferas e de energia revelam-nos um quadro coerente de bullying e submissão.
Recordemos casos apenas dos últimos meses: durante a discussão do Orçamento do Estado para 2018, o Parlamento aprovou uma contribuição extraordinária sobre as energias renováveis (com o voto a favor do PS), que recairia principalmente sobre a EDP Renováveis. No mesmo dia, o PS anunciou que iria repetir a votação e, dois ou três dias depois, votou contra, devolvendo centenas de milhões de euros às energéticas, apesar do investimento nas renováveis já estar hoje mais do que amortizado. Durante a discussão no Parlamento, os deputados do PS não tiveram problema nenhum em afirmar a bondade da reviravolta na tomada de posição: era preciso continuar a apostar nas renováveis e este era o Governo que ia baixar o preço da electricidade em 2018. António Costa e a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos repetiram o anúncio: pela primeira vez em 18 anos, a electricidade cairia 0,2%. Surpresa das surpresas, a EDP anunciou no fim do ano um aumento da electricidade em 2,5%. No início de 2018, a empresa anunciou mesmo que iria deixar de pagar a contribuição extraordinária sobre a energia, no valor de mais de 300 milhões de euros. António Costa reagiu, com um temperamento que raramente se lhe vê: “Lamento a atitude hostil que a EDP tem mantido e que representa, aliás, uma alteração da política que tinha com o anterior governo.” A EDP juntou-se à Galp e à REN na recusa de pagar impostos.
A política pública deste Governo sobre temáticas ambientais e civilizacionais como as alterações climáticas ocorre na fronteira entre a cosmética e propaganda. Ainda no final do ano passado, na cimeira “One Planet” de Emmanuel Macron, António Costa anunciou as linhas mestras da acção climática em Portugal — estender o funcionamento das centrais a carvão de 2020 para 2030, tornar o país “carbono neutro” até 2050 e organizar uma cimeira sobre transporte sustentável em Janeiro. Chegámos à tal “cimeira sobre transporte sustentável”, a MobiSummit.
Em Portugal, os transportes são a segunda fonte de emissões de gases com efeito de estufa, depois da energia. Para começar a resolver o problema, anunciou o primeiro-ministro, uma cimeira. Os organizadores da cimeira? EDP, o maior emissor de gases com efeito de estufa em Portugal, Via Verde como pseudónimo da Brisa, proprietária de auto-estradas onde passam anualmente um acumulado de 28 milhões de veículos a gasolina e a diesel e, para compor, a Volkswagen, mundialmente famosa pelo Dieselgate, escândalo em que a fabricante de automóveis criou um software fraudulento para esconder as emissões de gases com efeito de estufa e os pôs em oito a 11 milhões de carros (a Comissão Europeia também exigiu à Volkswagen que indemnizasse os proprietários burlados, mas a Volkswagen recusou-se). Dando uma vista de olhos pelo programa da cimeira que vai “resolver” o nosso problema de transportes, percebe-se que é proibida a entrada a transportes públicos e a única “solução” será substituir os nossos mais de seis milhões de veículos a combustíveis fósseis por outros mais de seis milhões de veículos eléctricos. Tudo o que for preciso para manter os negócios dos organizadores. O Governo empresta um ministro e um secretário de Estado para legitimar a estratégia.
À grande agressividade e até à “atitude hostil” por parte das empresas energéticas privadas, o Governo de António Costa e do secretário de Estado da Energia Jorge Seguro Sanches responde com anúncios grátis, almoços grátis, legitimação e genuflexão. De joelhos, o Governo tomou a decisão, a 8 de Janeiro e sem qualquer anúncio público, de prolongar, pela terceira vez, a autorização para a Galp e a italiana Eni furarem o mar de Aljezur à procura de petróleo e gás. Esta decisão ignora dezenas de milhares de objecções de cidadãos, organizações e a oposição de todos os municípios que foram consultados no final do ano passado acerca de um eventual prolongamento desta licença. Aliás, a decisão é mesmo uma reviravolta da decisão anterior do secretário de Estado da Energia, que em 2016 recusara uma nova autorização de prolongamento por dois anos para a perfuração por parte da Eni/Galp.
Como entretanto foi aprovada legislação que implica uma avaliação de impacto ambiental na fase de prospecção petrolífera, esta avaliação foi anunciada numa reportagem no Expresso. Para não destoar dos casos anteriores, a Eni anunciou que não fará nenhuma avaliação de impacto ambiental. Perante a submissão, mais bullying. Nos inúmeros processos judiciais em que a Eni responde por corrupção por esse mundo fora, a acusação costuma ser de comprar governantes e não de não cumprir os processos ambientais legais, mas como se viu há sempre a possibilidade de se encontrar governos ainda mais submissos.
A justificação dada pelo secretário de Estado para esta decisão, arrastando-se na miserabilidade argumentativa, inclui o “investimento” feito pelas empresas até agora: 76 milhões de euros, invoca. Quando perdoou uma contribuição de 400 milhões de euros às renováveis, não era preciso contas. Quando a Galp se recusou a pagar 240 milhões de euros relativos à Contribuição Extraordinária do Sector Energético de 2014, 2015, 2016 e 2017, não era preciso fazer contas. Há uma decisão política, não técnica. A decisão é ficar de joelhos.
Neste momento já é de esperar que, como faz com as energéticas, o Governo estenda uma passadeira vermelha às petrolíferas, o que deixa nas mãos da população local, no Algarve e Alentejo (mas não só), e dos movimentos sociais resolver este problema nas ruas, e de vez. Se eles se ajoelham, nós teremos de nos levantar.

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