Por falta de memória, por má fé ou por ignorância tem-se vindo a assistir a um branqueamento do regime salazarista que esteve à frente do país durante quase meio século. Relativamente aos mais jovens – os que agora têm menos de 40 anos – a escola tem muitas responsabilidades sobre a ignorância reinante porque a história contemporânea não é abordada com a profundidade necessária para transmitir à juventude como foram os anos negros da ditadura, até nos mais simples pormenores. Não era só a falta de liberdade mas a miséria em que se vivia que levou à emigração de centenas de milhares de portugueses para diversas partes do mundo, em especial, a Europa. Ainda por cima, uma emigração clandestina, a “salto” como ficou conhecida. Vivíamos numa espécie de prisão em que as grades se encontravam nas fronteiras, especialmente para os jovens que não queriam ser mobilizados para a Guerra Colonial. Todo isto numa altura em que o emprego em Portugal era escasso e mal remunerado enquanto abundava por essa Europa fora. Foram muitas centenas de milhares que emigraram e que, com as poupanças que enviavam para cá iam permitindo a sobrevivência do regime. Actualmente, entre os mais idosos, há quem se tenha já esquecido de como funcionava a educação, a saúde e a segurança social antes do 25 de Abril de 1974, para só referirmos sectores estruturantes da sociedade, como agora se designam. Reagem como se os direitos conquistados nos últimos 37 anos – que agora se encontram em risco – estivessem antes garantidos como o ar que se respira. No texto que hoje assina no “Público” o historiador Vasco Pulido Valente faz um mini mini retrato da sociedade portuguesa no tempo da ditadura e elabora uma possível explicação para o que agora estamos a viver. Vale a pena ler.
“O que sucedeu era inevitável. Apesar de um certo desenvolvimento entre 1950 e 1970, no "25 de Abril" Portugal era ainda um país muito pobre. Não falo de uma certa classe média urbana, que já ia comprando carro e fazendo, de quando em quando, uma ou outra viagem barata e curta. Falo da população rural e da gente que se começava a acumular à volta de Lisboa e do Porto ou emigrava ilegalmente para a Europa. Não tenho boas memórias desse tempo. A Universidade excedia com certeza em incompetência e servilismo o pior que havia no mundo. Na Faculdade de Direito, que não dispensava a gravata e uma cerimónia inútil e arcaica com os srs. professores, persistia o uso da sebenta (que se devia decorar). Na Faculdade de Letras (onde, por fim, me formei em Filosofia), quase não existiam professores no sentido substantivo da palavra e os que existiam vinham de Espanha ou da Igreja. Não se aprendia nada. O dinheiro não sobrava. Desde a escola que usei fatos virados do meu pai (que ficavam com as "casas", cerzidas, do lado errado). Os sapatos só se mudavam depois de muitas meias solas. Como, antes do nylon, as camisas, depois de muitos colarinhos de substituição e de uma dezena de punhos novos. Não se jantava fora e a disciplina doméstica impunha que se ficasse sob vigilância durante a tarde para, pelo menos, simular uma razoável "aplicação ao estudo" (a expressão é da época). Claro que nem toda a gente cumpria estes deveres. Mas quem os cumpria, ou arranjava maneira de fingir que os cumpria, estava reduzido a ler e, bastante mais tarde, a ver a horripilante televisão de Salazar e de Caetano. A sufocação da Ditadura explica em grande parte a prodigalidade e o desleixo da democracia. Portugal andava desesperado e faminto. Pior ainda, esse Portugal da guerra de África e da hipocrisia oficiosa deixara de ser compatível com a Europa - mesmo com a Espanha de Franco. Aqui não se vivia, só se vivia para lá de Badajoz ou, preferivelmente, dos Pirenéus. Não admira que no "25 de Abril" os portugueses pedissem tudo: a revolução e, passada a fantasia da revolução, um país moderno, com uns tostões no bolso, um Estado-providência (hoje "social") e uma economia em crescimento. Na imaginação comum, a "Europa" com certeza que pagaria. Alguma coisa pagou e, quando o que ela pagava não chegou para acalmar a nossa geral desconfiança e a nossa fome atávica, os governos entraram tranquilamente pelo caminho histórico do défice e da dívida, sem perceber que nos levavam à miséria do costume. Se calhar, o peso do voto não lhes permitia fazer mais nada."
Sem comentários:
Enviar um comentário