A
Parceria Transatlântica (TTIP na sigla em inglês), um projecto de Tratado que
tem estado a ser desenvolvido no maior secretismo entre os Estados Unidos e a
União Europeia é alvo de uma grande contestação dos dois lados do Atlântico,
tendo mesmo dado origem e uma petição assinada por mais de 2 milhões de
europeus. Se no Velho Continente há tantas dúvidas sobre os benefícios que por
cá teremos com este Tratado, isso significa que algo de prejudicial ele contém.
Em Portugal a direita aplaude-o discretamente – estamos à beira de eleições –
mas o PS aparece já a aprová-lo com todo o entusiasmo.
Esta
é mais uma daquelas linhas vermelhas que separam a esquerda da direita, tal
como acontece em relação ao Tratado Orçamental e a reestruturação da dívida
portuguesa, considerada inevitável por muitas personalidades da área da
economia que nada têm de radicais. Quanto ao TTIP o PS escolhe colocar-se ao
lado do neoliberalismo mais radical e este é mais um sinal para os eleitores
portugueses que irão votar nas eleições legislativas do próximo Outono.
A
seguir apresentamos a opinião de Francisco Louçã sobre a posição do PS,
transcrita do Público de hoje.
Vários comentadores estranharam que o programa PS não refira uma única vez
o Tratado Orçamental, que apesar de tudo regula Portugal como um protectorado
até 2036, mas apresente enfaticamente a necessidade de aprovação da Parceria
Transatlântica, o acordo que está ainda a ser negociado entre a Comissão
Europeia e os Estados Unidos.
Este projecto de Tratado tem suscitado forte controvérsia dos dois lados do
Atlântico. Na Europa, 2.186.940 cidadãos já assinaram o que será porventura a
maior petição popular da história da União Europeia (aqui o link para a campanha portuguesa),
contestando o que é conhecido do Tratado. Nos EUA, a deputada Elizabeth Warren,
entre outros, denunciou o segredo da
operação e, em particular, o mecanismo de resolução de conflitos que
permite perseguir um Estado nacional em nome dos interesses de uma empresa.
Em Portugal, em contrapartida, fala-se pouco do assunto (duas excepções
estão aqui
e aqui,
mas haverá outras). O PS tomou a dianteira, enquanto o PSD e o CDS se mantêm
mais discretos, afinal de contas vão seguindo o assunto por via do governo.
Mas, ao primeiro assomo de debate e de crítica, os advogados da Parceria
Transatlântica levantaram-se, zangados. Pedro Silva
Pereira, eurodeputado do PS e ex-ministro, entrou a pés juntos: “a
mentira e a demagogia estão a envenenar o debate público sobre a
importantíssima Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento”. Fervendo
de indignação contra este “envenenamento” do debate sobre coisa tão
“importantíssima”, escreve ele que os críticos pretendem nada menos do que
“enganar as pessoas para semear o pânico e deitar por terra uma negociação de
enorme importância geostratégica para a Europa e com consideráveis
potencialidades não só para o crescimento económico e o emprego, mas também
para criar um exigente quadro de referência regulatório para a globalização”.
Aqui está: eles querem “enganar as pessoas para semear o pânico” e já se sente
esse pânico nas ruas e nas praças. Vão ainda mais longe e procuram “deitar por
terra uma negociação de enorme importância geostratégica para a Europa”, que
permite “criar um exigente quadro de referência regulatório para a
globalização”, é isso que querem os facínoras que criticam esta Parceria
redentora, “importantíssima”.
Como não me atrevo a “semear o pânico”, nem muito menos a perturbar este
“exigente quadro de referência regulatório para a globalização” que,
finalmente, vai por ordem no mundo, nem ainda menos incorrer na fúria
devastadora de Pedro Silva Pereira, vou-me limitar a apresentar alguns dos
pontos conhecidos deste projecto de Tratado e, para não ser atrevido, a partir
unicamente dos documentos oficiais da União Europeia. Nada mais do que os
documentos oficialíssimos desta Parceira “importantíssima”.
Primeiro ponto: as negociações são tão secretas que a União Europeia teve
que assegurar às autoridades norte-americanas que documentos relevantes ficarão
protegidos durante pelo menos trinta anos (vide a garantia
de Ignacio Garcia Bercero, negociador chefe da Comissão Europeia).
Transparência, não tanto. Em 2047 saberemos como foi a negociação, é só preciso
ter paciência.
Segundo ponto. O objectivo é o tal “exigente quadro de referência
regulatório para a globalização”? Não. O objectivo é a liberalização do
comércio internacional, o que tem vindo a ser conhecido por “globalização” e
produziu o mundo em que vivemos. “Liberalização” é exactamente o contrário de
“regulação”.
Os negociadores do Tratado não escondem em nenhum momento que estão a
tratar de “liberalização” e não de “regulação”. Até o anunciam com a
intensidade ideológica de quem recebeu a revelação divina das políticas
liberais. Escreve por exemplo a Comissão Europeia, estudando as várias opções
quanto a modelos de liberalização: “Quanto maior a extensão da liberalização
proposta nas várias opções de política, maiores os ganhos estimados em
bem-estar” (“Impact Assessment Report on the future of EU-US trade relation”, Relatório do
gabinete da Comissão Europeia, 12.3.2013).
Terceiro ponto, ainda a partir dos documentos oficiais e não das análises
dos que querem “semear o pânico”: escreve o mesmo relatório que pode haver
riscos “prolongados e reais” de perdas de empregos. E isso é a consequência da
liberalização: “De facto, as reduções potenciais de emprego em alguns sectores
podem ser induzidas por mais emprego e crescimento dos salários nos sectores
que beneficiam de mais liberalização do comércio”. E acrescenta: “Ainda neste
contexto, há preocupações legítimas de que o trabalho não seja suficientemente
móvel entre sectores e entre Estados membros na União Europeia. Em
consequência, pode haver custos de ajustamento substanciais e prolongados”. É o
tal problema da flexibilidade do trabalho, o que em Portugal já vamos sabendo o
que significa.
Quarto ponto: a biodiversidade e as políticas ambientais podem ser posta em
causa por este processo. “Isto pode fazer crescer o desperdício e pode criar
perigos tanto para os recursos naturais como para a preservação da
biodiversidade”, escreve ainda o mesmo relatório.
Os relatórios e
estudos da Comissão e do Parlamento Europeu, mais uma vez só para
usar documentos oficiais, são um pouco mais claros do que os seus advogados
portugueses. Enaltecem a liberalização, porque esse é o objectivo da Parceria,
reconhecem os perigos quanto ao emprego e ambiente, discutem as consequências
e, na via das dúvidas, fecham em segredo por trinta anos os documentos que
possam ser prejudiciais a esta operação.
Apresentar a Parceria como uma forma de regulação não tem portanto
fundamento. Pelo contrário, nos Estados Unidos, a preocupação de alguns
legisladores e analistas é que esta Parceria represente um reversão
do pouco que foi feito em termos de regulação desde a crise financeira de
2007–2008. Para a Europa, o risco é ainda maior.
O único risco que não se corre é que este processo de liberalização mude as
fidelidades e conveniências partidárias. Os advogados da liberalização podiam
em todo o caso poupar-nos a este espectáculo triste de fingirem que estão a
regular os predadores financeiros ou a arrumar o mundo. É tudo
“importantíssimo” mas é o que temos tido. Uma vez liberal a doutrina, liberal
será a política. Triste Europa que tal destino aceita.
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