terça-feira, 16 de junho de 2015

TTIP: O PS MAIS UMA VEZ AO LADO DA DIREITA


A Parceria Transatlântica (TTIP na sigla em inglês), um projecto de Tratado que tem estado a ser desenvolvido no maior secretismo entre os Estados Unidos e a União Europeia é alvo de uma grande contestação dos dois lados do Atlântico, tendo mesmo dado origem e uma petição assinada por mais de 2 milhões de europeus. Se no Velho Continente há tantas dúvidas sobre os benefícios que por cá teremos com este Tratado, isso significa que algo de prejudicial ele contém. Em Portugal a direita aplaude-o discretamente – estamos à beira de eleições – mas o PS aparece já a aprová-lo com todo o entusiasmo.  
Esta é mais uma daquelas linhas vermelhas que separam a esquerda da direita, tal como acontece em relação ao Tratado Orçamental e a reestruturação da dívida portuguesa, considerada inevitável por muitas personalidades da área da economia que nada têm de radicais. Quanto ao TTIP o PS escolhe colocar-se ao lado do neoliberalismo mais radical e este é mais um sinal para os eleitores portugueses que irão votar nas eleições legislativas do próximo Outono.
A seguir apresentamos a opinião de Francisco Louçã sobre a posição do PS, transcrita do Público de hoje.
Vários comentadores estranharam que o programa PS não refira uma única vez o Tratado Orçamental, que apesar de tudo regula Portugal como um protectorado até 2036, mas apresente enfaticamente a necessidade de aprovação da Parceria Transatlântica, o acordo que está ainda a ser negociado entre a Comissão Europeia e os Estados Unidos.
Este projecto de Tratado tem suscitado forte controvérsia dos dois lados do Atlântico. Na Europa, 2.186.940 cidadãos já assinaram o que será porventura a maior petição popular da história da União Europeia (aqui o link para a campanha portuguesa), contestando o que é conhecido do Tratado. Nos EUA, a deputada Elizabeth Warren, entre outros, denunciou o segredo da operação e, em particular, o mecanismo de resolução de conflitos que permite perseguir um Estado nacional em nome dos interesses de uma empresa.
Em Portugal, em contrapartida, fala-se pouco do assunto (duas excepções estão aqui e aqui, mas haverá outras). O PS tomou a dianteira, enquanto o PSD e o CDS se mantêm mais discretos, afinal de contas vão seguindo o assunto por via do governo. Mas, ao primeiro assomo de debate e de crítica, os advogados da Parceria Transatlântica levantaram-se, zangados. Pedro Silva Pereira, eurodeputado do PS e ex-ministro, entrou a pés juntos: “a mentira e a demagogia estão a envenenar o debate público sobre a importantíssima Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento”. Fervendo de indignação contra este “envenenamento” do debate sobre coisa tão “importantíssima”, escreve ele que os críticos pretendem nada menos do que “enganar as pessoas para semear o pânico e deitar por terra uma negociação de enorme importância geostratégica para a Europa e com consideráveis potencialidades não só para o crescimento económico e o emprego, mas também para criar um exigente quadro de referência regulatório para a globalização”. Aqui está: eles querem “enganar as pessoas para semear o pânico” e já se sente esse pânico nas ruas e nas praças. Vão ainda mais longe e procuram “deitar por terra uma negociação de enorme importância geostratégica para a Europa”, que permite “criar um exigente quadro de referência regulatório para a globalização”, é isso que querem os facínoras que criticam esta Parceria redentora, “importantíssima”.
Como não me atrevo a “semear o pânico”, nem muito menos a perturbar este “exigente quadro de referência regulatório para a globalização” que, finalmente, vai por ordem no mundo, nem ainda menos incorrer na fúria devastadora de Pedro Silva Pereira, vou-me limitar a apresentar alguns dos pontos conhecidos deste projecto de Tratado e, para não ser atrevido, a partir unicamente dos documentos oficiais da União Europeia. Nada mais do que os documentos oficialíssimos desta Parceira “importantíssima”.
Primeiro ponto: as negociações são tão secretas que a União Europeia teve que assegurar às autoridades norte-americanas que documentos relevantes ficarão protegidos durante pelo menos trinta anos (vide a garantia de Ignacio Garcia Bercero, negociador chefe da Comissão Europeia). Transparência, não tanto. Em 2047 saberemos como foi a negociação, é só preciso ter paciência.
Segundo ponto. O objectivo é o tal “exigente quadro de referência regulatório para a globalização”? Não. O objectivo é a liberalização do comércio internacional, o que tem vindo a ser conhecido por “globalização” e produziu o mundo em que vivemos. “Liberalização” é exactamente o contrário de “regulação”.
Os negociadores do Tratado não escondem em nenhum momento que estão a tratar de “liberalização” e não de “regulação”. Até o anunciam com a intensidade ideológica de quem recebeu a revelação divina das políticas liberais. Escreve por exemplo a Comissão Europeia, estudando as várias opções quanto a modelos de liberalização: “Quanto maior a extensão da liberalização proposta nas várias opções de política, maiores os ganhos estimados em bem-estar” (“Impact Assessment Report on the future of EU-US trade relation”, Relatório do gabinete da Comissão Europeia, 12.3.2013).
Terceiro ponto, ainda a partir dos documentos oficiais e não das análises dos que querem “semear o pânico”: escreve o mesmo relatório que pode haver riscos “prolongados e reais” de perdas de empregos. E isso é a consequência da liberalização: “De facto, as reduções potenciais de emprego em alguns sectores podem ser induzidas por mais emprego e crescimento dos salários nos sectores que beneficiam de mais liberalização do comércio”. E acrescenta: “Ainda neste contexto, há preocupações legítimas de que o trabalho não seja suficientemente móvel entre sectores e entre Estados membros na União Europeia. Em consequência, pode haver custos de ajustamento substanciais e prolongados”. É o tal problema da flexibilidade do trabalho, o que em Portugal já vamos sabendo o que significa.
Quarto ponto: a biodiversidade e as políticas ambientais podem ser posta em causa por este processo. “Isto pode fazer crescer o desperdício e pode criar perigos tanto para os recursos naturais como para a preservação da biodiversidade”, escreve ainda o mesmo relatório.
Os relatórios e estudos da Comissão e do Parlamento Europeu, mais uma vez só para usar documentos oficiais, são um pouco mais claros do que os seus advogados portugueses. Enaltecem a liberalização, porque esse é o objectivo da Parceria, reconhecem os perigos quanto ao emprego e ambiente, discutem as consequências e, na via das dúvidas, fecham em segredo por trinta anos os documentos que possam ser prejudiciais a esta operação.
Apresentar a Parceria como uma forma de regulação não tem portanto fundamento. Pelo contrário, nos Estados Unidos, a preocupação de alguns legisladores e analistas é que esta Parceria represente um reversão do pouco que foi feito em termos de regulação desde a crise financeira de 2007–2008. Para a Europa, o risco é ainda maior.
O único risco que não se corre é que este processo de liberalização mude as fidelidades e conveniências partidárias. Os advogados da liberalização podiam em todo o caso poupar-nos a este espectáculo triste de fingirem que estão a regular os predadores financeiros ou a arrumar o mundo. É tudo “importantíssimo” mas é o que temos tido. Uma vez liberal a doutrina, liberal será a política. Triste Europa que tal destino aceita.

Sem comentários:

Enviar um comentário