A
direita ficou desorientada com a formação do novo governo e, por isso, não
consegue articular mais nenhum argumento senão o da ilegitimidade política do Governo
PS apoiado à sua esquerda. Há semanas que não consegue alinhavar mais nenhuma
ideia para além desta.
É
óbvio para a maioria dos portugueses que a exclusão de Bloco e PCP da
possibilidade de participarem na área governativa constituía um seguro de vida
para a direita que, de uma forma ou de outra, acabaria por fazer parte de
qualquer solução.
Começa
agora a perceber-se que o enorme e injustificável burburinho que PSD e CDS
levantaram (acolitados por Cavaco Silva) perante a formação de uma maioria de
esquerda na AR resultava também do receio de que fossem descobertas as
trapalhadas da sua acção governativa nos últimos quatro anos. Apenas uma semana
depois da tomada de posse do Governo PS, esse receio tem toda a justificação… O
que não tem qualquer justificação é que se tenha colocado em causa a legitimidade
do actual governo, sabendo-se que nenhuma ilegalidade o atinge.
O
seguinte artigo de opinião (*) que transcrevemos do Público de ontem coloca
muita clareza nesta situação.
Geralmente
consideramos que, em sistemas de governo nos quais o governo emana e depende
politicamente do Parlamento (como o parlamentar ou o nosso
semi-presidencialista), os Parlamentos que asseguram maior representatividade
partidária conduzem a uma situação de menor governabilidade. A ideia é a de que
Parlamentos muito fragmentados — ou seja, nos quais não só estão representados
vários partidos, como alguns desses partidos ocupam um número razoável de
assentos parlamentares — dificultam a obtenção de maiorias absolutas por parte
de um só partido, sendo que esse facto, por si só, impossibilita a formação de
executivos com boas condições de durabilidade e estabilidade.
Porém,
a ideia de que a inexistência de maiorias absolutas vai traduzir-se em
situações de ingovernabilidade não é um axioma dogmático. Pelo contrário, na
maioria dos sistemas em que o executivo tem base parlamentar e cujos
Parlamentos são muito fragmentados, a “tradição” não é a de acreditar que o
governo minoritário assumirá funções em condições de instabilidade: a prática é
antes a de criar condições para que o executivo disponha das condições mínimas
de durabilidade através da formação de governos de coligação e/ou através de
acordos de incidência parlamentar.
No
entanto, em Portugal, desenvolvemos a ideia de que estas condições de
governabilidade só poderiam resultar da obtenção de maioria absoluta por parte
de um dos dois maiores partidos (PS ou PSD), da formação de governos de
coligação maioritários entre os dois partidos de direita (PSD e CDS) ou, no
limite, da formação de coligações entre o PS e os partidos de direita. Mesmo
com um sistema eleitoral proporcional que se traduz numa (relativamente) grande
representatividade, garantindo nomeadamente que dois partidos de esquerda (BE e
PCP) obtinham, eleição após eleição, expressão parlamentar significativa,
aceitava-se como verdade absoluta que estes partidos não poderiam nunca
contribuir para as condições de governabilidade de um executivo socialista. E,
por isso, a maior representatividade partidária, vista em geral como uma
característica positiva do sistema político português, tinha, no entanto, esta
pecha negativa: ser sempre associada a falta de estabilidade governativa,
quando o PS assumia o governo dispondo apenas de maioria relativa no
Parlamento.
Este
tem sido, aliás, um dos argumentos a favor de uma reforma do sistema eleitoral
que instituísse apenas círculos uninominais: com esse sistema maioritário, a
representatividade parlamentar diminuiria (os partidos mais pequenos
praticamente desapareceriam de um futuro Parlamento), logo, a obtenção de
maiorias absolutas sairia facilitada e, assim, PS e PSD teriam, cada um,
condições ideais para formarem governo. Este argumento esquece que permitir
representação parlamentar a ideias e interesses divergentes traz para o plano
institucional o confronto entre elas, fazendo com que esses conflitos não
sobressaiam noutras esferas da vida social, nomeadamente em protestos
violentos. Mas este argumento esquece, sobretudo, que representatividade e
governabilidade não têm que ser antagónicas ou mutuamente exclusivas.
O
cenário político actual não veio apenas ultrapassar um bloqueio histórico no
nosso sistema partidário, que impedia o entendimento entre PS, PCP e BE. Os
acordos de incidência parlamentar, através dos quais os partidos à esquerda do
PS apoiam o executivo socialista, vieram mostrar como, também em Portugal, é
possível, em novas circunstâncias, manter um elevado nível de
representatividade sem, com isso, negar a governabilidade.
Dir-se-á
que ninguém sabe qual a durabilidade que este governo irá revelar. Mas esse
facto óbvio é verdadeiro para qualquer governo que inicia funções, sobretudo
para aqueles que se baseiam em coligações. Lembremo-nos que, dos vários
executivos PSD-CDS nestes quarenta anos, só o governo que agora cessou funções
conseguiu levar uma coligação até ao término da legislatura (e, mesmo assim,
tendo estado seriamente ameaçado no momento da “demissão irrevogável”). Hoje
parece exigir-se à esquerda uma durabilidade governativa que a direita nunca
havia apresentado. Pode ser que se atinja essa meta, mas, independentemente
disso, há que admitir que as condições de governabilidade mudaram e aumentaram
em Portugal.
Poder-se-á
argumentar ainda que o novo governo socialista terá que negociar detalhadamente
várias medidas importantes com o PCP e o BE. Esta ideia tem uma conotação
pejorativa porque vivemos um tempo que valoriza uma política de “consensos” —
que nega a essência da democracia. Pelo contrário, o diálogo político constante
é a base de qualquer sistema que assente num Parlamento fragmentado sem que
isso cause necessariamente instabilidade.
No
fundo, a partir de agora sabemos antes que, mantendo a representatividade, as
várias vozes representadas no Parlamento podem ser chamadas a contribuir para a
governabilidade. Isso não prejudica, antes melhora, as condições de formação e
de manutenção de governo.
(*) Ana Rita Ferreira, politóloga
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