Afirma-se
a certo passo do texto seguinte (*) que transcrevemos do Público de hoje, com
toda a razão, que a “desigualdade é um dos principais pilares que estruturam a
sociedade portuguesa”. Os dados publicados recentemente pelo INE e que aqui já
referimos de forma muito sintética, revelam a persistência de elevadas taxas de
pobreza entre a população portuguesa, uma condição a ter em conta, na medida em
que “pobreza e desigualdade são fenómenos parcialmente relacionados que se
alimentam mutuamente”. De qualquer maneira, é preciso ter em conta que as formas
de desigualdade são muito diversas e não se reduzem apenas com “políticas de combate
à pobreza” como se refere a seguir, de modo muito assertivo.
Como
tem sido claramente demonstrado por vários estudos nacionais e internacionais,
Portugal é um dos países mais desiguais da Europa e da OCDE. Este dado não tem
nada de novo e é sobejamente conhecido. Todavia, apesar desta evidência, o
elevado nível das desigualdades nunca foi encarado em Portugal como o alvo
primordial das políticas públicas. Em certos períodos elegeu-se a atenuação e a
redução pobreza num dos objetivos fundamentais de atuação. Políticas como o
Rendimento Social de Inserção e, particularmente, o Complemento Solidário para
Idosos alcançaram resultados relevantes. Contudo, o efeito que estas políticas
tiveram na redução da desigualdade, apesar de importante, foi relativamente
circunscrito. E isso é perfeitamente natural, já que estas não foram concebidas
para diminuir a desigualdade. É claro que pobreza e desigualdade são fenómenos
parcialmente relacionados que se alimentam mutuamente. Mas uma coisa é certa: a
desigualdade não se resolve somente com políticas de combate à pobreza. Um dos
problemas fundamentais que decorre do nível de desigualdade atingido em
Portugal tem a ver com a sua persistência, como se tratasse de um ciclo
inquebrável que não cessa de reproduzir fortes assimetrias e divisões entre a
população.
Nas
investigações desenvolvidas e publicadas no âmbito do Observatório das
Desigualdades, temos alertado para o facto das desigualdades deterem um caráter
multidimensional e sistémico. Na verdade, identificam-se fortes desigualdades
na distribuição dos rendimentos, designadamente na dispersão salarial, que tem
sido um dos principais motores do tal ciclo. Mas também a desigualdade que
aumenta a desproporção entre os rendimentos provenientes do trabalho, que se
comprimem, face a outras fontes de rendimento e de riqueza, como o capital, que
se expandem. No entanto, para se perceber como o ciclo da desigualdade se
reproduz é fundamental ir para além do rendimento e enquadrar outras dimensões.
A
este respeito posso nomear algumas: as desigualdades educacionais, que
continuam a ser determinantes num país que mantém os maiores défices de
escolarização da Europa; as desigualdades territoriais, que aprofundam a
distância entre as periferias e as maiores cidades, mas que simultaneamente
polarizam diferentes territórios no interior das áreas metropolitanas; as
desigualdades perante a mobilidade, onde quem detém meios de transporte
particular leva menos tempo nas deslocações diárias; as desigualdades de
género, que são transversais e se desenvolvem tanto nos locais de trabalho,
onde a disparidade salarial a favor dos homens se mantém, como no espaço
doméstico, onde as mulheres continuam a assegurar a maior parte das tarefas; as
desigualdades nas práticas de cidadania e de ação coletiva, nas quais os menos
escolarizados e qualificados tendem a estar mais arredados. Poderia continuar,
contudo, grande parte destas dimensões estão identificadas e relativamente bem
estudadas.
Uma
leitura transversal destes estudos concluirá sem grande dificuldade que a desigualdade
é um dos principais pilares que estruturam a sociedade portuguesa. Um pilar
perverso que tem de ser removido por intermédio da construção de uma reforma
estrutural que atinja diferentes dimensões e setores. Esta reforma terá de
incidir na política de rendimento quer no que diz respeito à sua devolução e
recuperação, quer na implementação de políticas de maior progressividade fiscal
sobre os escalões de rendimento do topo, capazes de, simultaneamente, englobar
as diversas componentes do rendimento e da riqueza, como o capital e a
propriedade. Mas uma reforma estrutural deverá ser mais do que uma reforma
fiscal. Tem de ser uma reforma que aprofunde a escolarização nas diferentes
gerações; uma reforma que invista no transporte público para todos; uma reforma
que aumente o salário mínimo, equipare as remunerações entre homens e mulheres,
e resolva os problemas da precariedade laboral; uma reforma que invista nos
equipamentos e serviços públicos, como a rede pré-escolar ou o apoio à
população idosa; uma reforma que integre as pessoas com deficiência nos vários
domínios da vida social e profissional; uma reforma que contemple a equidade
entre territórios como um princípio básico de intervenção. Estas e outras
políticas necessárias não representam slogans vazios, como certos políticos e comentadores
se apressam a classificar. Pelo contrário, são os vazios que se perpetuam na
sociedade portuguesa que têm de ser urgentemente preenchidos. E, para tal, é
fundamental conceber a política de igualdade como a verdadeira reforma
estrutural.
(*) Renato Miguel do Carmo, Sociólogo do ISCTE-IUL e do Observatório
das Desigualdades
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