Mais
uma vez recorrendo à memória dos mais velhos, os mais atentos ainda não se
esqueceram de que no tempo da ditadura, só na oposição é que se “fazia política”
e havia “políticos” pois os apoiantes de Salazar e o próprio ditador ocupavam
os seus cargos apenas para defenderem os interesses do povo. Só havia políticos
entre os anti-salazaristas…
Actualmente
assiste-se a um paralelismo com esta situação, tentando-se incutir na mente dos
cidadãos através dos porta-vozes dos sectores mais conservadores espalhados
pela comunicação social a ideia de que o natural e normal é ser-se de direita e
que organizações ou personalidades de esquerda devem ser rotuladas, leia-se
descriminadas, para que não haja qualquer confusão…
É
evidente “que é tão marcadamente ideológico ser de direita como de esquerda”
como muito bem sublinha José Vítor Malheiros em mais um excelente artigo de
opinião que assina no Público de hoje, onde aborda um tema muito esquecido mas
de realce primordial nos tempos que correm.
Imaginem
que o jornal online
Observador,
em vez de ser um órgão de propaganda da direita neoliberal, criado e financiado
por empresários conservadores empenhados em impor na esfera política e em
defender no espaço público uma agenda de privatização de serviços públicos,
desregulação económica, liberalização do mercado de trabalho, destruição de
direitos sociais e demonização do Estado, fosse um projecto criado e financiado
por pessoas ligadas à esquerda, empenhadas em difundir um ideário de combate às
desigualdades e à injustiça social e em noticiar a actualidade a partir de um
ponto de vista socialmente empenhado e intelectualmente independente dos
poderes vigentes.
É
evidente que, nessas circunstâncias, não veríamos um elemento do Observador a ocupar um lugar cativo nos painéis de
comentadores da RTP e, se por acaso esse jornal fosse alguma vez citado por
outros órgãos de comunicação social, seria identificado como “o jornal de
esquerda Observador” ou “o jornal Observador, ligado aos meios da esquerda radical” e os
jornalistas que assim o identificassem considerariam estar a fazer uma
descrição não só objectiva mas necessária da fonte em causa.
Porque
é que isso não acontece, simetricamente, e pelas mesmas razões, com o actual
jornal Observador e porque é que este não é
sempre apresentado como “o jornal de direita Observador”
ou “o jornal Observador, ligado aos meios da direita
radical”?
Isso
acontece devido à hegemonia do pensamento conservador que considera “normal”
que se seja de direita, e portanto não digno de ser sublinhado ou sequer
referido, e “anormal” que se seja progressista, e portanto exigindo referência
que sublinhe esse “desvio”. Para este pensamento hegemónico, ser de direita não
é ser nada porque essa é a posição “natural”, enquanto ser de esquerda é ser
algo “não natural”. Era precisamente pela mesma razão que, durante o Estado
Novo, os apoiantes de Salazar “não faziam política”, por muito radicais que
fossem nesse apoio em todas as facetas da sua vida, e os oposicionistas eram considerados
“políticos”.
É
evidente que os jornalistas, de direita ou de esquerda, sabem que é tão
marcadamente ideológico ser de direita como de esquerda, mas por que razão
sublinham então uma coisa e passam a outra em branco? Em certos casos, por
mimetismo irracional. Muitos querem apenas to blend
in
e seguem a onda, imitam os colegas, as revistas, os famosos, os gurus que
aparecem nos media
– e estes
são esmagadoramente de direita mesmo quando “não falam de política”. Noutros
casos, por mimetismo premeditado. Querem apenas passar despercebidos e não pôr
em risco o seu posto de trabalho. Noutros casos por cálculo. Querem fazer
carreira, seja onde for, e aprenderam na escola de antijornalismo por onde
andaram que a adulação funciona e que não se pisam os calos dos poderosos.
Noutros caso por medo. A direita conservadora está no poder e tem o dinheiro, a
força e muito da lei do seu lado. Noutros casos, devido ao ritmo industrial de
produção imposto na maior parte das redacções, que obriga a aproveitar a informação
primária tal como chega de algum centro de poder e a republicá-la sem tempo
para a editar, reconstruir, verificar seja o que for ou sequer pensar. Noutros
casos por pura distracção, porque o vento reaccionário é tão constante que se
torna hipnótico. Noutros casos ainda, uma minoria, por consciente adesão a um
modelo ideológico que se pretende reproduzir.
Estas
circunstâncias têm todas algo em comum. São todas contrárias à deontologia que
rege o jornalismo, que obriga a uma total independência dos poderes e à adopção
de uma atitude de equidade e saudável cepticismo em relação à informação
recebida das fontes, oficiais ou não.
Seja qual for a razão em cada
caso particular, é por isso que continuamos a ver os noticiários cheios de
citações nunca contraditadas de Pedro Passos Coelho, diga este as inanidades
que disser no seu escasso léxico e por frágil que seja a sua situação política
no interior do partido, e é por isso que qualquer pergunta a um político de
esquerda está sempre dedicada a tentar encontrar brechas no entendimento
parlamentar à esquerda, mesmo quando elas têm de ser inventadas por uma edição
imaginativa. Porquê? Porque é preciso sublinhar, em cada momento, a
contranaturalidade de um governo apoiado pela esquerda. Pensamento hegemónico
da direita dixit. É também por isso que os pivots fazem uma careta quando dizem o nome de um
dirigente do PCP mas não quando dizem o nome de um dirigente do PSD, numa
demonstração de sectarismo que pode ser inconsciente, mas não é por isso menos
sectária. É por isso que, numa entrevista de Catarina
Martins publicada neste jornal, tem de ser colocada em título uma
frase que dá a ideia contrária ao pensamento expresso pela entrevistada (dando
a impressão de que, se fosse hoje, o BE não assinaria o acordo com o PS) mas
que é conforme ao ar do tempo, sempre hegemónico, da direita.
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