O
Bloco de Esquerda vai apresentar uma iniciativa legislativa sobre a eutanásia e
coube ao médico e ex-coordenador do Bloco, João Semedo, explicar esta quinta-feira
os pontos essenciais do projecto de lei.
Apenas
uma pessoa “adulta, consciente, lúcida, sem perturbações mentais, com uma lesão definitiva ou doença incurável, fatal e irreversível, num contexto de sofrimento intolerável e que exprima a sua vontade” poderá pedir antecipação
da própria morte. A estas premissas não são admitidas quaisquer excepções,
provavelmente para evitar abusos e atropelos à lei, numa matéria tão complexa.
Muito a propósito, deixamos aqui
a transcrição de um artigo de opinião assinado por João Semedo no Expresso de
ontem (11/02).
Germano de Sousa, antigo bastonário da Ordem dos
Médicos, escreve, na última edição do Expresso, sobre eutanásia. Defende duas
teses: sem referendo não pode haver eutanásia e a ética profissional proíbe os
médicos de a praticarem. Da combinação destas duas parece resultar uma terceira:
eutanásia sim, desde que haja referendo e não seja um médico a praticá-la. A ideia
não surge de forma explícita no texto e percebe-se porquê: Germano de Sousa confia
tanto no referendo ou na ética – ou nas duas – para impedir a eutanásia, que se
dispensa de nos dizer o que pensa sobre essa possibilidade. Mas quem melhor do
que um médico para ajudar o doente nessa hora tão dramática?
Para Germano de Sousa, o Parlamento não tem
legitimidade para aprovar a despenalização por duas razões: é “uma minoria a
impor a todos as suas próprias opções e decisões de vida” e pelo facto de a “eutanásia
não constar dos programas de nenhum dos partidos desses deputados”. Nenhuma das
afirmações faz sentido e a segunda é falsa. No contexto da nossa democracia
constitucional os direitos individuais estão consagrados na lei e não foram
referendados. É assim que deve ser, os direitos não podem ficar reféns de
referendos, essa é a estratégia de quem não os quer ver reconhecidos. Acresce que
a aprovação de uma lei não exige aos partidos a sua prévia consagração programática,
se o exigisse, o Parlamento e o país há muito que estariam paralisados.
Ao contrário do que diz Germano de Sousa,
aprovar a despenalização não traduz uma imposição: a lei não vai impor nada ou
obrigar seja quem for, a lei vai permitir o recurso à eutanásia a quem o
quiser, desde que cumpra os requisitos exigidos. Manter a actual penalização é
que constitui uma imposição porque proíbe o recurso à morte assistida a quem o
pretenda.
A despenalização é uma opção individual que
deve ser consagrada na lei. Mas para Germano de Sousa outros valores mais altos
se levantam. Leio com espanto: a ética e a deontologia médicas “para mim sobrelevam
qualquer lei ou religião”. O ex-bastonário imagina uma sociedade conduzida pelos
princípios do juramento de Hipócrates (século V a.C.) e pela ética da sua ordem. Não duvido
que os próprios médicos reconhecem que não pode ser assim.
Os médicos reconhecem o direito dos doentes à autodeterminação
que lhes permite aceitar ou recusar o que lhes é proposto. Por maioria de razão,
dignidade e padrões de vida são definições e escolhas do doente que o médico
está obrigado a respeitar, sem pretender impor as suas. Se assim não for, “o
princípio ético de tudo fazer pelo bem-estar e dignidade do seu doente”,
defendido por Germano de Sousa, esvazia-se de conteúdo.
A relação médico-doente consolida-se tanto no
respeito pelo direito do médico à objeção de consciência como no respeito pela autodeterminação
do doente. O médico não pode ser obrigado a praticar eutanásia e o doente não pode
ser impedido de a ela recorrer. A ética médica não pode esmagar os direitos de
personalidade do doente, são eles que permitem afirmar e preservar a sua
dignidade.
A
eutanásia não é uma obrigação, a sua despenalização é um direito que alarga as
escolhas de cada um perante o sofrimento, a agonia, a dependência, a degradação.
Mais direitos, mais democracia. É disso que se trata.
Sem comentários:
Enviar um comentário