A
expressão “travar todos os projectos de petróleo, gás e carvão é
hoje um imperativo para poder haver futuro” com que João Camargo, investigador em alterações
climáticas, conclui o artigo de opinião que assina hoje no “Público”, devia ser
repetida até à exaustão, em toda a comunicação social porque é um forte alerta
relativamente à nossa sobrevivência como humanidade. Os efeitos da concentração
de dióxido de carbono na atmosfera estão a fazer-se sentir de forma mais
intensa do que se esperava ainda há pouco tempo. As temperaturas extremas, as
secas, os incêndios florestais e os supertufões são alguns desses efeitos que
só tendem a agravar-se caso não sejam tomadas medidas muito concretas em relação
à utilização de combustíveis fósseis. Se necessário enfrentando os poderosos “lobbies”
destas indústrias. Uma opinião pública bem informada é meio caminho andado para
uma oposição tenaz aos seus intentos.
A temperatura média do planeta está mais
de 1ºC mais quente do que na era pré-industrial. Em 2017 viu-se a formação
recorde de dez furacões no Atlântico. Em Portugal e na Califórnia, os incêndios
florestais, coincidindo com as temperaturas recorde (altas) e humidades recorde
(baixas), levaram a mais de 150 mortes, enquanto ainda na semana passada
incêndios devastavam os vales italianos no sopé dos Alpes. No Pacífico, o
supertufão Lan atingiu o Japão com prejuízos superiores a 20 mil milhões
de euros. Em Portugal, mais de 90% do território é atingido por seca extrema ou
severa, e mais de metade das albufeiras estão com níveis abaixo dos 40% em
Novembro. E apesar de ser realidade há mais de um ano, voltou a ecoar com
estrondo na imprensa o facto de a concentração de dióxido de carbono na
atmosfera ter chegado às 400 partes por milhão, inédita nos últimos 800 mil
anos (e só há seres humanos há 300 mil anos).
É nesta altura que, 23 anos depois do
seu lançamento, a Cimeira das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas para
as Alterações Climáticas (UNFCCC), a COP-23, reúne-se em Bona para
“operacionalizar” o Acordo de Paris, saído da COP-21 em França. Esta cimeira
estava agendada para as ilhas Fiji mas, como coincidia com a época de ciclones
no Pacífico Sul, foi deslocada para a Alemanha. As ilhas do Pacífico são as
mais ameaçadas no imediato, em particular pela subida do nível médio do mar,
que está a tornar as cheias marítimas cada vez mais frequentes e o custo de
reconstrução cada vez mais incomportável.
Dois anos depois de se ter chegado ao
Acordo de Paris, a COP-23 tem como objectivo estabelecer o “livro de regras”
para a sua implementação. Apesar de o acordo já estar em vigor, as “regras” têm
agora de ser estabelecidas. E quando chegamos ao concreto, começam os
problemas: há fortes discordâncias acerca do tratamento diferenciado entre
países (desenvolvidos vs. em desenvolvimento, poluidores vs. mais
afectados), acerca da informação exacta dada por cada país no seu esforço
nacional de cortar emissões e de como a mesma pode ser ou não devidamente
monitorizada, assim como acerca dos 100 mil milhões de euros de financiamento,
que sempre pairam sob as negociações.
Entretanto, o fantasma dos Estados
Unidos continua presente: o anúncio de Donald Trump este ano de que o país
sairia do Acordo de Paris não faz com que a participação dos EUA no processo
acabe. Os EUA são o maior produtor mundial de combustíveis fósseis e o segundo
maior emissor de gases com efeito de estufa (primeiro emissor per capita).
Tal como os EUA boicotaram activamente o Protocolo de Quioto (que depois
abandonaram), estarão novamente nestas negociações, representados pelas
petrolíferas e por negacionistas das alterações climáticas (o secretário de
Estado Rex Tillerson é ex-presidente da ExxonMobil, a maior petrolífera do
mundo, o secretário da Energia e o chefe da Agência de Protecção Ambiental
negam a existência de alterações climáticas). Como o processo de saída do
Acordo de Paris e da UNFCCC demora anos a concretizar-se, os EUA continuarão
activamente a poder empatar negociações e bloquear ainda mais as acções
concretas necessárias (quando não provendo loucuras como o nuclear ou o carvão
"limpo").
Vários relatórios saídos nas últimas
semanas têm revelado a intensidade da pressão das petrolíferas sobre as
negociações e sobre os governos nacionais: as maiores petrolíferas do mundo,
assim como grandes empresas agrícolas e de energia, estarão presentes na
COP-23, operando nos bastidores como se de nações se tratassem. É como negociar
um acordo sobre o controlo do tabaco incluindo as tabaqueiras.
Desde a entrada em vigor do Acordo de
Paris, os bancos de desenvolvimento multilaterais aumentaram o financiamento
público a projectos de combustíveis fósseis: em 2016 estes projectos receberam
7,7 mil milhões de euros, a maior parte dos quais vieram do Banco Mundial, do
Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento e do Banco de
Desenvolvimento Asiático. O financiamento directo para a exploração de petróleo
e gás mais que duplicou entre 2015 e 2016, chegando aos 1,84 mil milhões de
euros.
Na União Europeia, que se tem e que se
vende como “campeã do clima”, a pressão das petrolíferas para o investimento
massivo em gás fóssil (tão natural como o petróleo ou o carvão) é crescente: em
2016, mais de 1000 lobistas e 104 milhões de euros compraram o acesso aos
corredores da Comissão Europeia e valeram 464 reuniões da indústria do gás com
o comissário europeu do Clima e Energia, o espanhol Miguel Arias Cañete, e o
responsável pela União Energética, o eslovaco Maroš Šefcovic. O investimento
deverá vir a ter bom retorno, já que a UE prepara-se para dar perto de seis mil
milhões de euros à Shell, à BP, à ExxonMobil, à Statoil e à General Electric,
entre outras, para montar uma rede colossal de infra-estruturas que vai desde
os portos LNG aos gigantescos gasodutos, como o que pretende ligar o Azerbaijão
à Itália.
O livro de regras a sair de Bona será
negociado em boa parte por sabotadores que prefeririam que o mesmo não
existisse mas que, existindo, beneficiam da sua capacidade de suborno e
cooptação para torná-lo inútil. Fica nas mãos das populações responder ao livro
de regras que não é mais do que um mapa para o colapso. Na véspera da abertura,
mais de 3000 activistas de toda a Europa — incluindo Portugal — invadiram a
mina de Hambach, propriedade da RWE, e uma das maiores minas de lenhite (carvão
castanho) do mundo. Travar todos os projectos de petróleo, gás e carvão é hoje
um imperativo para poder haver futuro.
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