Francisco
Louçã brinda-nos regularmente com excelentes artigos que assina na imprensa
escrita e comentários políticos que produz na televisão. O texto que
reproduzimos a seguir foi capturado no Público de hoje e tem como tema o fresco
episódio relacionado com a comezaina que recentemente teve lugar no Panteão
Nacional. Estamos, já se percebeu, perante uma “farsa sem fim” que só é possível
acontecer porque a oposição de direita não tem capacidade nem engenho para
pegar nos temas que constituem as reais preocupações dos portugueses. Há que
encobrir as conquistas que o actual Governo ancorado à esquerda tem realizado
em prol dos cidadãos nacionais. Então, deita-se mão de tudo o que está ao
alcance ainda que se tenha de entrar em insanáveis contradições sobre um
passado ainda recente como sucedeu com o governante da maioria de direita “que
assinou o despacho abrindo a porta à mercantilização” do Panteão e agora se mostra “indignado por ter sido usada essa técnica de
financiamento que ele inventou”.
O
episódio do Panteão tem mais significado pelo que não diz do que pelo que diz.
Não é que não tenha graça em si mesmo. De facto, ele revela todos os tiques da
política: o governante que assinou o despacho abrindo a porta à mercantilização
do espaço atira-se para a televisão indignado por ter sido usada essa técnica
de financiamento que ele inventou, mas não se lembra se ele próprio autorizou
coisa parecida; o secretário de Estado do turismo do anterior governo, que
achou tudo bem, junta-se à pândega e faz doutrina de partido; esses mesmos
ex-secretários de Estado que aprovaram o fim dos feriados da Independência e da
República gritam agora pelos altos valores pátrios magoados pela moça dos jeans
rotos; o governo diz que nada sabia e que é inadmissível e a directora do
Panteão mais a direcção geral do Património, que podiam aprovar ou recusar o
banquete da WebSummit, respondem que tudo vai da conta calada, pois a
tabela de preços é o que importa e está no despacho.
Tudo
se vai diluindo entretanto numa farsa sem fim. Afinal, no sábado houve outra
jantarada no Palácio da Ajuda; nos Jerónimos, é só marcar; noutros monumentos,
mais ou menos solenes, é fazer as contas. No próprio Panteão, é coisa vezeira,
já houve Harry Potter com bruxarias e mezinhas, e haverá o que mais se quiser,
desde missas cantadas a outras
iguarias. Dispor dos lugares da memória tornou-se trivial, e na sede da PIDE na
António Maria Cardoso ficou só um condomínio de luxo.
Isso
é o que foi dito. Terá consequências: no afã de mostrar serviço, devem cair do
céu algumas proibições solenes. Ora, talvez valha a pena pensar antes de
decidir. Primeiro, porque a mercantilização dos espaços de monumentos nacionais
resulta do seu sub-financiamento e dessa ideia peregrina de que o critério da
sua existência é a criação de lucro. Se o Estado quiser ser sério, custa
dinheiro. Se for “menos Estado”, custa respeitabilidade. Segundo, porque a
realização de cerimónias públicas nos espaços públicos é desejável. Ou não vai
haver assinatura de tratados nos Jerónimos? Ou colóquios e concertos em Mafra?
Ou banquetes de Estado em diversos destes espaços? Ou concertos nas igrejas, já
agora ao lado de túmulos, os tais que não estão naquela sala do Panteão? Se o
critério for o interesse público, a abertura ao público e o significado
cultural ou nacional e não o dinheirinho e a vaidade privada de uma qualquer
festarola, então ficará estabelecido um padrão compreensível e haverá bons
momentos de música ou outras cerimónias culturais no Panteão.
Mas
o que não foi dito, insisto, é mesmo o mais importante. É esta
híper-sensibilidade às redes sociais, o medo do que possa parecer, mais do que
ser, a vertigem de agir logo antes que se fale muito do caso. Depois de
Pedrógão e das semanas à espera do tal pedido de desculpas, como se isso fosse
a salvação das vítimas de ontem e das pessoas ameaçadas no futuro, o governo
corre agora para atalhar problemas, mesmo problemas inventados na bolha, ou
sobretudo estes. Gato escaldado da água fria tem medo e qualquer tweet escaldante mobiliza o
conselho de ministros num ápice. O facto é que este país fica intoxicado de
banalidade, de corrida para o boato, de ping pong sem memória, em que os
maiores trafulhas se fazem de virtuosos.
Ao desviar-se do orçamento,
dos impostos, das notícias do bolso das pessoas e da visão estratégica na
economia, o governo estará a deixar perder a sua vantagem. Para o governo, a
direita a reclamar o seu passado no corte de pensões é a prenda celestial;
mergulhar a WebSummit, o seu esfuziante ícone modernista, na confusão do
banquete, é fugir para o purgatório. A contaminação pela banalidade é a
estratégia da direita, nada mais lhe restando. Pela primeira vez, está a
resultar e só porque o governo está nervoso.
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