Por aquilo que se passa em Portugal, facilmente constatamos que a aplicação prática das doutrinas neoliberais é ainda pior que a anunciada pela oposição de esquerda. Não passava pela cabeça de ninguém que se recorresse de forma sistemática e deliberada à formulação de legislação que atropela ostensivamente a lei fundamental, ao mesmo tempo que se monta um sistema de propaganda contra a Constituição da República e os que velam pelo seu cumprimento. É o que se passa em relação ao ataque brutal que está a ser feito, quer directamente quer através de impostos, aos reformados e pensionistas, que se transformaram em alvos preferenciais por constituírem um dos sectores mais frágeis da população em termos reivindicativos.
Cada vez vai sendo mais insustentável para o Governo a defesa do empobrecimento acelerado de largos sectores da população ainda que continue a contar com a ajuda de um ou outro apaniguado como é o caso do que aconteceu há poucos dias com a declaração de apoio de Silva Lopes a mais um corte das pensões. É a resposta a esta tomada de posição que encontramos hoje no Público, sob a forma de carta aberta da presidente da associação APRE!, Maria do Rosário Gama.
Carta aberta ao Dr. Silva Lopes
Foi com perplexidade que li no jornal PÚBLICO as declarações que o senhor prestou à Rádio Renascença, pois sempre me mereceu respeito por muitas das posições que já assumiu ao longo da sua vida, mas, desta vez, na minha opinião, ultrapassou o limite do razoável ao afirmar peremptoriamente que "não há outro remédio" senão o corte das pensões.
O cidadão comum, ao ler a notícia do PÚBLICO, questiona-se sobre qual será o valor da(s) sua(s) pensão(ões), uma vez que está tão à vontade para sofrer os cortes que o Governo está disposto a implementar. Devia, antes de prestar essas declarações, fazer uma declaração de interesses e dizer a todos quanto recebe mensalmente.
Ao senhor, não fará diferença sofrer cortes de 10% ou de 20%, mas a maioria dos aposentados e pensionistas não aguenta mais cortes.
Saiba o Sr. Dr. que, segundo dados do Expresso de 8 de Dezembro de 2012 (ainda antes da aplicação da sobretaxa e da "malfadada" Contribuição Extraordinária de Solidariedade), num total de 2.092 milhões de pensionistas da Segurança Social, 1.881 milhões (87,2%) têm pensões inferiores a 500 euros, havendo 12,9% com pensões inferiores a 294 euros/mês e só 11.400 (0,5%) têm pensões entre 2500 e 5000 euros.
No que se refere à Caixa Geral de Aposentações, dos 453 mil aposentados, só 0,6% (15.740) recebiam pensões acima de 3000 € (juízes, magistrados, professores catedráticos), mas 12,6% recebiam pensões inferiores a 294 €/mês e 8,5% tinham pensões entre 294 € e 500 €. Podia acrescentar outros dados mas estes são suficientes para se perceber quão injusta e desumana é a frase do Sr. Dr. "Acho muito bem o corte nas pensões". O senhor pode achar, mas os aposentados, pensionistas e reformados que tiveram uma carreira contributiva de longos anos, que descontaram segundo as leis vigentes, que viram o cálculo das suas pensões feito segundo as regras estabelecidas, não podem achar bem que lhes retirem aquilo a que têm direito.
Diz o senhor que a "a geração grisalha não pode asfixiar a geração nova da maneira como tem feito até aqui", mas esquece-se de dizer que a geração mais nova é a geração dos nossos filhos e netos e esquece-se de dizer, ou não sabe, que a geração grisalha constitui, neste momento, o subsídio de desemprego daqueles que o senhor diz serem asfixiados. Gostaria de tê-lo ouvido dizer que o Governo e a troika não podem asfixiar os portugueses reformados ou no activo, que têm que adoptar uma política que leve ao crescimento económico e que combata o desemprego. Só assim a geração mais nova pode não viver asfixiada e não com os cortes nas pensões dos seus pais e avós.
"Sou a favor da contribuição de solidariedade social", diz o senhor - não sei qual a contribuição a que se refere, se a Contribuição Extraordinária de Solidariedade, se a nova taxa, chamada Taxa de Sustentabilidade. Em qualquer dos casos, é de lamentar que, num país que não declarou o estado de emergência e que, mesmo nessa situação, as leis devem ser gerais e abstractas, aceite que só um grupo social seja afectado. Nós já pagamos as contribuições e impostos como todo o cidadão deste país, não podemos aceitar ser discriminados da forma que o senhor aceita.
"Sou a favor desta taxa que o Governo agora promete e que, se calhar, também vai ser declarada inconstitucional", continua. Ainda bem que temos uma Constituição que defende o Estado social, por muito que os senhores estejam contra ela. É já pouco do que resta do 25 de Abril; todos os democratas deviam regozijar-se pela protecção que a lei fundamental dá ao cidadão e que, por esse facto, devia ser objecto de respeito.
Finalmente, acrescenta, nas suas declarações: "Se nós temos a Constituição e a interpretação do Tribunal Constitucional a impedir estas coisas, isto rebenta tudo".
Ai rebenta, rebenta, mas não do modo como o senhor pensa... Rebenta pelo lado do mais fraco... O desânimo já é muito e as pessoas não são estúpidas. Sabem que há outras opções que permitem ao Governo ir buscar o dinheiro, em vez "roubar" aos aposentados, pensionistas e reformados e também aos funcionários públicos, que, tal como nós, são vítimas de um Governo vampiresco que sugará até à última gota de sangue se o deixarmos.